Não visite nossa cozinha, visite nosso banheiro

Nesta semana, ficamos sabendo que 35,4% dos restaurantes que entregam pelo iFood na cidade de São Paulo são dark kitchens.

Ou seja, operações que não atendem in situ, apenas preparam a comida e a despacham por motoqueiros. Os restaurantes fantasmas ocupam, tipicamente, galpões anônimos e feiosos.

Há um longo rol de objeções possíveis às dark kitchens.

Muitas incorrem em algum tipo de falsidade ideológica. Fazem o cliente imaginar uma casa com tradição, a pizza do nonno, receitas de gerações e ilusões afins –quando tudo se resume a um investidor astuto que alugou um quadrado num barracão com telhado de eternit.

A concorrência põe em desvantagem os restaurantes com serviço presencial. Sem os custos de garçons, pratos, taças e talheres, com o aluguel barato, as dark kitchens praticam preços muito inferiores.

Mas, enfim, é a vida. Não há nada ilegal nisso.

Uma das críticas mais contundentes, aliás, diz respeito ao limbo legal em que essas cozinhas operam. A Câmara paulistana aprovou, no ano passado, um pacote de regras, mas ainda há um monte de coisa sem regulamentação.

A opacidade da dark kitchen –não à toa, os termos que a definem remetem a algo obscuro ou misterioso– é um ponto frequentemente objetado.

Alega-se, por exemplo, que o cliente não faz ideia de que se passa na cozinha. Se é limpa, se é minimamente salubre.

Aí eu rebato: e nos restaurantes das antigas? Alguém sabe?

Em São Paulo, desde 1994, os restaurantes são obrigados a pregar na parede uma placa com a frase “visite nossa cozinha”.

Na posição de cliente, eu nunca olhei para a placa e pensei: “Boa ideia, vou lá visitar”. Não conheço ninguém que o tenha feito. Nem minha mãe, obcecada por limpeza, cogitou visitar cozinha alguma.

Ninguém visita “nossa” cozinha porque ninguém quer estragar o programa de comer fora.

Verdadeiro como todo bom lugar-comum, o coração não sente o que os olhos não veem. A gente deixa passar batido um monte de sinais de pouco asseio. A gente gosta da comida, a gente gosta do lugar, a gente não quer saber.

Ademais, visitar a cozinha perturbaria o funcionamento do restaurante e o seu próprio jantar. Você precisaria cobrir a cabeleira com uma touquinha ridícula. Estaria sob risco de acidentes com panelas borbulhantes num espaço diminuto. Furada total.

Na condição de jornalista, já visitei muitas cozinhas. Sempre com planejamento prévio, tudo muito controlado. Ainda assim, vi coisas que gostaria de poder desver.

Um tostão de conselho: deixe a fiscalização das cozinhas para os fiscais. Se o restaurante é tão encardido que incomoda, pare de frequentá-lo. Expor-se ao horror sanitário não vai te fazer bem.

Se você faz questão de uma medida confiável da higiene, visite o banheiro do lugar. Quando ele é sujo, a cozinha também é. Outro lugar-comum que não costuma falhar.

Com perdão pela obviedade, isso não funciona no delivery. Pedir comida é sempre um tiro no escuro, tanto faz se é dark kitchen ou qualquer outro restaurante.

Fonte: Folha de S.Paulo

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