O fim do mundo chegou antes para a gastronomia

O tempo marcha num passo estranho. Todos os dias parecem iguais: as groselhas do JB pela manhã, a coletiva do Mandetta ao cair da tarde e o panelaço das 20h30 em ponto. A quarentena lembra o roteiro de “Feitiço do Tempo” (1993), filme em que o personagem de Bill Murray fica preso em um detestável dia de inverno.

Eventos recentes, contudo, foram transferidos para o escaninho mental das memórias distantes. A última vez em que abraçamos nossos pais. A última cervejada com os amigos. A última feira livre com pastel e caldo de cana.

O comboio fúnebre de caminhões na Itália já é recordação de outra era. As imagens desta semana são o que conta. E elas trazem terror. Os corpos abandonados e incendiados nas ruas do vizinho Equador. As dezenas de covas rasas abertas no cemitério de Vila Formosa, aqui em São Paulo.

O monstro é real e bate às nossas portas –quando já não está acomodado no sofá.

Compartilho da visão de Atila Iamarino e Sidarta Ribeiro: a Covid-19 não vai deixar pedra sobre pedra. Há de surgir uma nova era, seja lá o que for isso. Antes, porém, teremos um rastro de destruição global inédito para as gerações pós-guerra.

É o fim do mundo? De certa forma, sim. Quando tudo isto acabar, sobrará uma população economicamente quebrada, dilacerada emocionalmente e desorientada por completo.

Tem desgraça para todo mundo, mas ela não chega de uma vez só. O que é fútil cai primeiro.

O apocalipse chegou antes para a gastronomia. Ela não está só. Fazem-lhe companhia outros setores acessórios: moda, turismo, enofilia, o mercado de luxo como um todo.

Não é só a impossibilidade de frequentar restaurantes. No caos da peste, a gastronomia perde o sentido. Ninguém quer saber se o bife é angus, wagyu, hereford ou nelore. Danem-se as regras que definem a verdadeira pizza napolitana. Ao inferno com as trufas, o atum gordo, a salumeria artesanal, o café de microlote. Se tivermos o que comer, já está bom o bastante. Aliás, vamos guardar dinheiro para gastar no essencial.

A ficha ainda não caiu no setor. Sigo recebendo e-mails de ovos de Páscoa cheios de frufru. Do restaurante x ou y que entrega em domicílio seus pratos de três dígitos –acondicionados em recipientes plásticos que serão descartados para emporcalhar o oceano. Das aulas virtuais sobre vinho, cerveja artesanal ou o diabo.

A blogueiragem se aguenta firme e atuante, por dois motivos. Um: na quarentena, qualquer coisa entretém. Que venham os lives dos influencers. Dois: os fornecedores de mimos para o pessoal do Instagram estão em negação. Quando eles se derem conta do tamanho do buraco, adeus vídeos de marmitinha chique.

Espero estar errado, pois é o meu mundo que está caindo. Se a epidemia passar e tudo voltar de boas ao normal, pagarei feliz uma cerveja para cada um que esfregar na minha fuça as bobagens que escrevi. Mas precisa ser pessoalmente. Isolamento social, só na praga.

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Fonte: Folha de S.Paulo