O mundo sem Angeli e sem pizza à Califórnia

O dia amanheceu melancólico com a notícia da aposentadoria do gigante Angeli. O cartunista de 65 anos, pai dos personagens Bob Cuspe e Rê Bordosa, encerrou a carreira após receber diagnóstico de afasia –distúrbio degenerativo que afeta as capacidades de comunicação e compreensão da linguagem.

Eu sou um cara metido a blasé, me recuso a fazer papel de fã de qualquer um, mas o Angeli é meu ídolo. Foi justamente por passar a adolescência mergulhado na coleção da revista Chiclete com Banana que eu desenvolvi algum senso crítico e me tornei este ser cínico. Tem um lado bom, acreditem.

“Ah… lá vem mais um falar de si mesmo.” Exato.

Quase tudo o que escrevemos diz respeito a nós mesmos, com louváveis exceções para a prova de química e a reportagem sobre o congestionamento na saída para o feriado.

E o Angeli, com todo respeito à família e ao próprio Arnaldo, transcende a figura humana do desenhista. O homem continua vivo, ainda bem. Mas precisamos lidar com o fato de que o mundo, de agora em diante, não será mais escrutinado publicamente pela lente genial do Angeli –alguém comentou, nas minhas redes sociais, que uma palavra é anagrama da outra.

A aposentadoria do Angeli é mais um soco nos rins da minha geração, os filhos dos anos 1960 e 70. Um sinal inequívoco de que nosso tempo está por acabar, é hora de abrir espaço para outros. É assim, sempre foi, sempre será e deve ser assim, mas quem disse que não dói?

E a pizza à Califórnia, que raios tem a ver com isso tudo?

Sempre ouvi dizer que esse sabor de pizza era um favorito do Angeli –que eu não conheço pessoalmente, mas é amigo de muitos amigos. Pode ser ou pode não ser, mas é fato que a pizza à Califórnia foi imortalizada em seu traço. Vide o quadrinho do macho man Bibelô que ilustra este texto.

Aposto que muitos aqui sequer saibam o que é uma pizza à Califórnia.

Nunca fez sucesso (ao contrário do Angeli), sempre foi marginal (como ele). É uma pizza de carne defumada (pode ser lombinho, peru ou presunto tender) com frutas em calda: abacaxi, pêssego, figo, o que rolasse.

Quase ninguém pedia essa ceia de Natal doce-salgada na massa chata e redonda, mas ela estava presente em quase todas as pizzarias de São Paulo. Isso numa época em que não existia pizza napolitana DOC, burrata nem mel picante de abelhas nativas sem ferrão –toda a polarização da pizza oscilava entre a massa grossa e a massa fina. Hoje é algo raríssimo.

A pizza à Califórnia é só mais uma coisa de um tempo que já passou. Passou para o Angeli, para mim, para as nossas gerações, para São Paulo, para todos e tudo. É assim que é e deve ser, mas eu não sou obrigado a gostar, assim como eu nunca gostei da pizza à Califórnia.

Por falar em obrigado… muito obrigado, Angeli!

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Fonte: Folha de S.Paulo