Palmirinha foi avó autêntica em meio à ‘cozinha afetiva’ de araque

Estive com Palmirinha por uma hora, mais ou menos, na gravação de um programa da extinta rádio Globo em São Paulo.

Palmirinha era o que parecia ser. Era o que era. Não encenava uma personagem. Era autêntica, o que talvez explique seu sucesso numa época em que os programas de culinária para donas de casa já estavam aposentados ou repaginados –com chefs homens no lugar das avozinhas.

Por uma hora, mais ou menos, estive com uma avozinha arquetípica. Com roupas de avozinha, modos de avozinha e uma simpatia fora do comum. Palmirinha teve uma vida heavy metal, abusada pela mãe e pelo marido, mas reagiu à violência em ritmo de valsa, foxtrot e bom-bocado.

Palmirinha tratava a todos, sem distinção, como se fossem seus netos. Não era preciso mais do que uma hora, mais ou menos, para perceber isso. Eu, que sou ateu, quase pedi a bênção quando fui me despedir dela.

Palmirinha foi a última de uma casta de apresentadoras cuja missão era ensinar receitas à mulher que precisava alimentar a família e conseguir uma renda extra sem sair de casa. Vinha da mesma linhagem de Ofélia Ramos Anunciato, da “Cozinha Maravilhosa de Ofélia”, um clássico dos anos 1970 e 80.

Era um festival de salpicão, panqueca de carne, torta fria de atum, torta quente de frango, arroz de forno, abobrinha recheada, bolo de nozes, espuma de abacaxi e mosaico de gelatina.

Todo o repertório caseiro e meio antiquado que se via também nas páginas da revista Claudia Cozinha, sob a batuta da maior de todas as culinaristas, Bettina Orrico.

Palmirinha chegou toda vovozinha quando o mundo já havia decidido –mui corretamente– que era absurdo ensinar tarefas domésticas para mulheres “do lar” na TV aberta.

Óbvio que o estilo de programa culinário persistiu na programação matinal, com uma série de ajustes cosméticos e estruturais. Trouxeram homens, como Edu Guedes, para mostrar que não, aquilo não era coisa de dona de casa. Empregaram mulheres cada vez mais empoderadas, de Ana Maria Braga a Rita Lobo.

De resto, a ênfase nos programas de cozinha se voltou para os chefs-celebridades e seu receituário muitas vezes inexequível: Jamie Oliver, Nigella Lawson, Claude Troigros, Alex Atala.

E Palmirinha. A vovó continuava lá, firme como uma rocha, e todo mundo gostava dela.

Palmirinha cozinhava comida de avó raiz quando virou “trend”, no setor, o apelo marqueteiro oco de expressões como “cozinha afetiva” –desgastadas por chefs de formação universitária que servem caldo de abóbora na entrada e manjar de coco na sobremesa.

As pessoas não são burras, a despeito de toda a evidência em contrário. Elas perceberam que Palmirinha era verdadeira.

A bênção, vó. Fica com Deus.

Fonte: Folha de S.Paulo

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