Quilombo em SC é atração turística com visita guiada, doces e contador de histórias

Famosa entre surfistas, Garopaba é cheia de belezas naturais. Suas praias, dunas e cachoeiras atraem turistas de norte a sul do país e fazem da cidade catarinense um destino comum entre os amantes do verão.

Mas além de trilhas de aventura e costões rochosos com água fresca, Garopaba é também um município quilombola.

Com pouco mais de 24 mil habitantes, a cidade engloba as comunidades Aldeia, na região do Campo D’una, e Morro do Fortunato, que fica perto da lagoa do Macacu e se tornou rota turística nos últimos anos, com a venda de guloseimas e de passeios educativos.

“A pessoa tem que estar ciente de que está numa comunidade quilombola, com pessoas humildes. Não vai ser recebida com tapete vermelho, mansão ou piscina”, diz Maria Aparecida Machado Batista, 49, presidente da associação do Morro do Fortunato. “Claro que estamos bem instruídos, mas esta é nossa realidade.”

Interessados no passado e no presente do território negro, turistas vão ao local em busca de histórias, pratos tradicionais e paisagens ricas em natureza.

As visitas são em grupo de no mínimo 30 pessoas e, no máximo, 60, afirma Batista, mais conhecida como dona Cida. Os valores cobrados pelos quilombolas vão de R$ 20 a R$ 40 por visitante, com diferentes pacotes disponíveis.

Entre as atividades oferecidas, estão uma caminhada pelo povoado, o preparo de café da manhã, ou almoço, exibição da horta orgânica, mostra de artesanatos e experimentação de doces e salgados.

A reportagem da Folha visitou a área e provou algumas das iguarias —incluindo os diferentes tipos de doce de banana, que, segundo as vendedoras, são os que fazem mais sucesso entre os turistas.

Arroxeada, a geleia de banana fabricada pela quilombola Edna Isabel, 33, faz fama principalmente entre aqueles que querem controlar a glicose no corpo, já que sua receita não tem açúcar, diz ela, apontando para o rótulo do produto.

O sabor, é claro, transborda o cheiro e gosto da fruta. Adocicado, porém, dificilmente faria alguém adivinhar que não tem sacarose.

“O segredo em si não vou revelar”, afirma ela, rindo. “Mas posso dizer que demora de quatro a cinco horas no fogo para ficar pronto.”

A catarinense também vende doce de banana com açúcar. Mas, curiosamente, ele é menos marcante que o outro.

Sob o selo Delícias na Mesa, ela também vende geleias de morango com gengibre, de abacaxi, de laranja, de amora roxa, de amora preta, e de amora silvestre. Sua prioridade, afirma, é trabalhar com frutas colhidas no próprio quintal.

Isabel também vende biscoitos. Com crocância, eles derretem na boca e são pouco adocicados —tanto em termos de receita quanto de sabor. As opções incluem manteiga, polvilho com coco fresco e farinha de milho com coco.

Segundo ela, a ideia de maneirar no açúcar veio quando ingressou na graduação de nutrição. Hoje, sua geleia sem o item está no cardápio da merenda escolar do município.

“Vendemos para o PNAE [Programa Nacional de Alimentação Escolar] e o IFSC [Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina]. Também participamos de editais. É uma renda a mais”, diz Mercedes Machado, 51. “A gente também aceita encomendas e vende na feirinha do Mercado Produtor de Garopaba.”

Também parte do Delícias na Mesa, Mercedes cozinha em mais dois selos da comunidade, o Doce do Fortunato e o Grupo do Pão.

“Daqui, nós colhemos butiá, maracujá, goiaba, banana, amora, jabuticaba e várias coisas. De fora, pegamos frutas como laranja, tangerina e uva. Queremos plantar mais para evitar pegar de fora”, diz.

Sua geleia de butiá, livre de glutén, tem sabor forte. É levemente azeda, mas, ainda assim, doce. Já a de banana —da marca Doce do Fortunato— mostrou ter acidez, apesar de conter doses de limão
—usado como conservante.

Dos pães, o mais famoso é o de batata-doce, afirma a cozinheira. “A merendeira diz que as crianças amam.”

Seja pelas plantações individuais das cozinheiras ou pela horta orgânica da comunidade, as frutas e os legumes usados para o preparo das guloseimas estão relacionados com o passado do território.

Conhecido como o contador de histórias da comunidade, Maurilio Machado, 65, narrou à repórter a trajetória de seus ancestrais e sua ligação com a produção de alimentos.

Ele começa explicando quem foi o fundador do quilombo, Fortunato Justino Machado, também chamado de Pai Nato, seu bisavô.

“Uns dizem que Fortunato comprou as terras com o dinheiro de uma safra de café. Outros, que são herança do antigo senhor [Ignácio Pereira da Silva], o que, na época, era chamado de ‘terras devolutas’.”

O que se sabe, como mostram registros oficiais analisados pela Fundação Palmares, é que Fortunato fez muitas plantações nesse território, provavelmente de olho no lucro que poderia ter, já que, na segunda metade do século 19, Garopaba vivia no impulso da atividade agrícola e passava a integrar uma importante rota comercial de alimentos.

“Fortunato plantou muita banana e café”, diz o contador. “Não existem mais nem o cafezal nem o bananal que ele ergueu. Mas me lembro que conheci, quando criança.”

Ele descreve, então, outras produções orquestradas pelo bisavô. “Se criava muito porco, e a banha era usada como azeite. Tinham criação de galinha, engenho de farinha e de açúcar. Plantio de milho, feijão, mandioca, alho, amendoim”, afirma.

“O café da comunidade era transportado, em carro de boi, para Garopaba e, de lá, para Florianópolis, em lancha. Fortunato ficou muito rico. É por isso que nossa comunidade sempre foi muito comentada.”

Mas se um dia o quilombo conseguiu renda às custas da produção agrícola, hoje retira da atividade rendimentos menores. As cozinheiras afirmam que não se sustentam só com as vendas e precisam comprar muito ingrediente fora da comunidade. O que ajuda mesmo, dizem, é a plantação interna.

Na horta orgânica, “tem de tudo um pouco”, diz Ana Paula de Machado, 45, enquanto descansa por uns minutos após capinar a terra. “Temos cinco tipos de alface, berinjela, batata-doce, milho, feijão, amendoim, aipim, mamão, azedinha, enfim. Muita coisa.”

Os visitantes podem, além de bisbilhotar o verde que cresce na horta, comprar o que já estiver colhido.

Para dona Cida, os passeios guiados contribuem para a principal luta encabeçada pelos moradores: a titulação do Morro do Fortunato.

Certificado pela Fundação Cultural Palmares em 2006, o quilombo é uma das milhares de comunidades do Brasil que ainda não têm seu direito à terra oficializado por um título, conforme prevê a Constituição

“É um prazer passar conhecimento. Mostrar como é a comunidade, o nosso dia a dia. Explicar o que é um quilombo”, diz a liderança. “É também uma forma de levar o nome da comunidade para fora, além de quebrar tabus racistas e ajudar na titulação.”

Fonte: Folha de S.Paulo

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