Pular para o conteúdo

Viajando nas palavras de Nina Horta

Soube que neste sábado (27) abrem-se inscrições para mais uma rodada do curso sobre escrita e comida, baseado na obra da cronista Nina Horta, ministrado online pela jornalista Luiza Fecarotta (Literatura de Sensações, www.aipim.etc.br).

Esta me contou que, além da análise dos elegantes e divertidos textos sobre comida que Nina (que morreu em 2019) publicava na Folha, também haverá espaço, especialmente numa das quatro aulas, para comentar seus textos que abordam assuntos de viagens.

Desnecessário dizer que também ao falar de viagens —como de literatura, de afazeres cotidianos ou de qualquer assunto— Nina tinha o condão de tecer com as palavras uma teia fina e flexível que embalava nossa inteligência e imaginação.

“Incorporar a comida aos registros de viagem não só dá carne e profundidade aos ambientes e aos seus personagens, do ponto de vista social, econômico e político, como provoca o narrador a enfrentar limitações verbais para traduzir prazeres ou desprazeres”, diz Luiza, completando: “Nina faz isso de maneira adorável e nos oferece uma leitura aprazível, quando, por exemplo, segreda ao leitor que se renderá a uma adjetivação piegas, contra os manuais de estilo, para falar de um mês de férias”.

Conformado com o fato de que nunca chegarei à sofisticação descontraída e ao humor refinado de Nina, recolhi-me ao meu papel de leitor e passei a lembrar referências de viagens que colhi em sua obra, nas muitas conversas que compartilhamos pela vida nos mais de 30 anos em que convivemos —e também num encontro com ares mais turísticos, no seu sítio em Paraty.

Das viagens para longe, a mais comentada por Nina era sempre sua participação no simpósio em Oxford, na Inglaterra, organizado por Alan Davidson (autor da enorme enciclopédia de comida “Oxford Companion to Food”), que ela tanto admirava. Isto foi em 1996, e naquele ano o tema era justamente… “Comida e Viagem” (“o lugar é lindo, dentro da universidade”, “simpósio muito bom e teórico, mas com comida impossível de ruim”).

Foi tanto assunto que não teve jeito. Que eu me lembre, ela dali para a frente falou sempre dos temas e das pessoas, mas quase nada do lugar.

Tendo um apartamento no Rio de Janeiro, outro assunto recorrente era o bairro de Copacabana. Menos do que falar das famosas virtudes naturais do lugar, nos seus escritos era a paisagem humana que mais o definia: “É uma grande feira livre de velhinhas com cheiro de pelo de gato, de turbante, bocas pintadas de vermelho. De velhos de bermuda, aposentados, pernas tortas, interessadíssimos nas meninas. A democratização das idades, a suprema ventura de poder mostrar os estragos do corpo sem pudor, numa aposentadoria minguada, naquele sol morno da manhã, naquela sensualidade cálida”.

Onde sabores e aromas mais se imiscuíam em seus relatos de viagem era em seu sítio de Paraty, no litoral fluminense, pedaço de terra e sertão nas proximidades do mar. Foi onde, numa visita, compartilhei um pouco daquilo que lia com água na boca em suas crônicas.

Num almoço de verão, naquele misto de calor e umidade, fomos servidos de gigantescos camarões fritos para desbastar e comer com as mãos lambuzadas, acompanhados de palmito, farinha, cachaça e a indispensável pimenta fresca colhida dos canteiros por seu marido Sylvio.

Ali em Paraty, gentes, paisagens e comidas se adicionam. “Já pedimos ao Almir, o pescador e líder da ilha do Araújo, em Paraty, que conte e ilustre as histórias do lugar. É bonito, o lugar. Hoje, o céu está azul, o mar sem ondas e há um sol frio de maio. O estoque de cachaça está chegando de barco e todos ajudam, numa boa vontade que dá ideia do prazer com que será bebida. As garças-brancas pousam em todas as pedras numa perna só, e uma árvore está inteira carregada delas como se fossem mangas ou goiabas. Alguns homens costuram redes, dona Rosa frita peixes e pastéis. A criançada descamba do morro a cada barco que chega para vender conchas, conversar, saber novidades da festa do Divino. Uns rapazinhos carregam tinas de camarões fervilhando de frescos.” Mais nítido e solar, impossível.

Fonte: Folha de S.Paulo