Viajar para não voltar

Voltando cautelosamente ao convívio social, tenho ido a um ou outro restaurante e até me arriscado em viagens aéreas para outros cantos.

Chama a atenção o fato de que restaurantes estejam lotados (o que é notável, mesmo que em São Paulo tenham menos lugares disponíveis e funcionem em horários restritos) e que aviões estejam até com overbooking (mesmo considerando que há menos voos).

Os fenômenos parecem indicar a avidez com que as pessoas estão querendo retomar hábitos prazerosos, como comer fora (o que inclui encontrar gente) ou visitar novas paragens. E à medida que no Brasil a vacinação avança, ainda que a passos de tartaruga (pois gerenciada por mulas), aumenta o número de pessoas que se encorajam a sair do confinamento e ganhar o mundo —um mundo inicialmente ali na esquina.

Mas imagine que, ao destampar a garrafa de espumante com aquele gás louco para explodir, você se encontre com a possibilidade de ganhar o mundo de verdade, se soltar por um ano sem fronteiras?

É apenas uma hipótese —no caso de nós brasileiros—, mas para muitos a possibilidade se descortina, a partir de uma oferta da empresa Airbnb, que gerencia alugueis de imóveis por temporada.

Falo da oferta, feita no site da empresa, de dar a 12 pessoas (com direito a três convidados ou familiares) um período de um ano hospedando-se gratuitamente pelo mundo em imóveis disponíveis na plataforma. Vale tudo: praia, campo, cidade. Os 12 escolhidos ganham crédito para os alugueis, uma grana para transporte e acesso a certas atrações locais. Em troca, alimentarão a empresa com informações e avaliações da experiência que estarão vivendo.

Para quem gosta de viajar, e está sufocado por mais de um ano de isolamento, não parece o paraíso?
Não é um trabalho, pois não há remuneração. Com isso, os segmentos que poderiam se interessar são específicos —como aposentados, pessoas que vivem de renda ou o crescente número de profissionais que trabalham remotamente.

As inscrições vão até 30 de junho, no site do Airbnb —busque por “liveanywhere”. Só que não: para se inscrever, o candidato deve ser residente em um dos países de uma lista de 33. Adivinhe: o Brasil não está lá. Se você morar no Chile ou na Argentina, por exemplo, pode sonhar com este ano de perambulação pelo mundo. Mas como a milícia genocida que nos governa transformou o Brasil num tétrico covidário, a muitos não parece interessante espalhar brasileiros pelo mundo.

Ainda assim, fica a deixa para sonhar com novos tempos que poderão vir pós-pandemia. A continuar o governo protofascista que nos assola, a muita gente o sonho de ir para longe cresce como a pústula envenenada que tomou de assalto o Planalto.

Mas, mesmo que vivêssemos em tempos de otimismo e progresso, o ímpeto de viajar, e viver uma experiência mais longa do que meras semanas de férias, é comum a muita gente, e muitas vezes refreado pelas exigências profissionais.

Mas, especialmente depois das experiências de trabalho remoto aceleradas pela pandemia, parecem ampliar-se as janelas para possíveis ausências prolongadas mesmo para quem ainda não está aposentado nem vive de renda.

Esta é uma constatação do próprio Airbnb, que o levou a lançar este recrutamento de voluntários. Segundo a plataforma, entre 2019 e 2021 aumentou em 10% o número de estadias com 28 dias ou mais de duração. Destes usuários, 10% afirmaram ter um estilo de vida nômade. Além disto, 74% dos consumidores pesquisados manifestaram interesse em viver em outro local, longe da empresa em que trabalham.

Ou seja, se esses números estão certos, eles mostram que cresce o desejo de viajar. E não só como turismo: como modo de vida. Uma realidade que nunca tínhamos visto antes com tal envergadura.

Fonte: Folha de S.Paulo