O paraíso tropical da Austrália que só aceita 400 visitantes por vez

A Ilha de Lord Howe abriga o recife de coral mais austral do mundo — Foto: PHOTOSBYASH/GETTY IMAGES

Peixes multicoloridos nadam em volta das minhas pernas nas águas cristalinas do Pacífico Sul. Em uma caminhada pela floresta subtropical, bato palmas — e os pássaros em vez de voar, correm na minha direção, domesticados pela falta de predadores.

As pessoas andam de bicicleta ao longo de 13 km de estradas estreitas, passando por túneis formados por palmeiras e crianças caminhando descalças para a escola. Não há outdoors, chave do quarto, cadeado para bicicleta, tampouco sinal de telefone celular.

Após deixar moedas em uma caixinha, totalmente na confiança, peguei um abacate em uma barraca de frutas à beira da estrada; uma máscara e um snorkel em uma cabana numa praia deserta; e um carrinho e tacos de golfe num campo de nove buracos.

Raramente há mais de outras duas pessoas pegando sol em uma das 11 praias de areia branca da ilha, e as maiores aglomerações que eu vi foram no festival semanal de peixe frito.

A Ilha de Lord Howe tem apenas 11 km de comprimento e 2 km de largura, um pedaço de terra idílico em forma de bumerangue 780 km a nordeste de Sydney.

A ilha circunda uma lagoa azul turquesa cercada pelo recife de coral mais austral do mundo, e foi declarada Patrimônio Mundial pela Unesco em 1982 por sua espetacular geografia vulcânica, fauna endêmica rara e espécies de plantas nativas que não são encontradas em nenhum outro lugar do planeta.

Após uma visita em 1997, o naturalista britânico Sir David Attenborough descreveu o lugar como “tão extraordinário que é quase inacreditável… poucas ilhas, com certeza, conseguem ser tão acessíveis, tão marcantes e, ainda assim, tão intocadas.”

No entanto, este pedaço do paraíso é um destino caro demais para a maioria dos viajantes. Embora seja um voo de apenas duas horas de Sydney ou Brisbane, sai mais barato comprar uma passagem para Los Angeles.

A Ilha de Lord Howe foi declarada Patrimônio Mundial pela Unesco em 1982 por sua beleza e biodiversidade — Foto: CUTHBERT48/GETTY IMAGES

Os restaurantes são caros, assim como as acomodações de luxo da ilha, que devem ser reservadas com um ano de antecedência. Não há camping, tampouco hospedagem econômica — e navios de cruzeiro são proibidos.

Será que Lord Howe é a ilha mais exclusiva da Austrália então, um refúgio para os super-ricos que olham com desprezo para o viajante comum?

De jeito nenhum. Na verdade, é exatamente o oposto.

Tudo em Lord Howe é descontraído, exceto o fervor com que seus moradores protegem este paraíso.

A ilha outrora desabitada só foi descoberta em 1788 — e muitos residentes são descendentes dos primeiros colonizadores europeus que se estabeleceram ali em 1833.

As paisagens intocadas são seu ganha pão há quase um século, desde que os turistas desembarcaram na lagoa em hidroaviões Sandringham no fim dos anos 1940.

Em 1981, muito antes de “ecoturismo” ser uma palavra da moda e “overtourism” uma maldição, os cerca de 350 habitantes permanentes da ilha manifestaram preocupação com a destruição do seu habitat natural, com espécies invasoras, poluição e desenvolvimento.

Como resultado, o Conselho eleito da Ilha de Lord Howe, composto por quatro moradores e três membros do governo estadual de Nova Gales do Sul, limitou o número de visitantes a 400 por vez. E assim permanece até hoje.

A ilha tem regras rígidas e políticas ambientais. Os carros são restritos aos residentes que precisam deles. Não há ar-condicionado. O Conselho deve ser consultado antes de cortar um galho de árvore ou escolher uma tinta.

“Nós brincamos que você precisa de uma licença para cavar no seu próprio jardim!”, diz Clive Wilson, guia local e morador de longa data.

“Somos acusados ​​de ser burocratas ao extremo, mas nosso objetivo é preservar nosso único e delicado meio ambiente.”

Libby Grant, gerente do Capella Lodge, me contou sobre a vida na ilha no curto traslado do aeroporto para o resort de nove suítes em um carrinho de golfe elétrico.

Como todas as residências, a pousada coleta água da chuva para beber, e usa água de poço para lavar e fazer jardinagem.

“Um dos nossos maiores desafios é esperar pela barca quinzenal que chega com alimentos e suprimentos do continente”, diz ela.

Felizmente, frutas, legumes e verduras são cultivados nos viveiros da ilha.

“Nosso chef também procura algas em todo o litoral da ilha, e os pescadores nos fornecem peixe fresco.”

A reciclagem é uma parte importante da vida diária dos habitantes. Resíduos orgânicos de residências, restaurantes e lixeiras públicas, além do lodo de esgoto, são enviados para uma unidade de compostagem vertical, uma instalação de nível internacional que converte 86% do lixo da ilha em adubo para a comunidade.

Plásticos recicláveis, alumínio e vidro são transportados de barco para o continente e vendidos para compensar os custos do frete.

Já os resíduos não-recicláveis ​​são compactados e levados para um lixão no continente, uma vez que não há mais aterros sanitários na ilha.

Um sistema baseado no princípio do “poluidor pagador” desencoraja o descarte de lixo doméstico, o que significa que comprar um sofá novo, pode custar US$ 1,2 mil para despachar o antigo.

A eletricidade também tem um custo alto — um sistema de captação de energia solar para reduzir a dependência do diesel, que é caro e poluente, está previsto para ser concluído em 2020.

“Os altos custos para moradores e empresas são resultado de um vida cada vez mais contemporânea e ecologicamente correta em uma ilha remota”, afirma Grant, especialmente quando hospedam uma clientela que espera todos os confortos de casa dentro dos rigorosos limites ecológicos da ilha.

Peguei uma bicicleta gratuita e pedalei até o pequeno vilarejo da ilha, escondido pela folhagem tropical. Tem um centro comunitário, teatro, uma padaria, um açougue e uma mercearia; uma agência dos correios, algumas lojinhas e a sede do governo, onde o nascimento de um bebê na ilha é anunciado por uma “fralda” rosa ou azul no mastro da bandeira.

Os lucros das vendas na loja de bebida, operada pelo Conselho da ilha, são revertidos para projetos de melhoria local, o que significa que tomar uma cerveja é literalmente um serviço comunitário.

A paisagem da ilha é diversificada — da densa floresta tropical a montanhas íngremes. Então há uma série de atividades ao ar livre para desfrutar, incluindo surf, mountain bike e boliche de grama.

Na lagoa de 6 km de comprimento, aluguei um caiaque e remei até a Ilha do Coelho, onde havia apenas eu — e aproveitei para fazer um piquenique.

De volta à costa, coloquei o equipamento de mergulho e saí de barco para mergulhar — foi quando me deparei com cardumes de espécies tropicais das correntes quentes da Grande Barreira de Corais que se misturam às águas mais frias de Lord Howe.

Essa mistura cria uma coleção rica e incomum de criaturas marinhas e corais que normalmente não são encontrados juntos, como atum e salmão ao lado de peixes-anjo tropicais e 86 tipos de coral.

No fim da tarde, pedalei até a Ned’s Beach para participar do ritual de alimentar peixes em águas rasas.

Na manhã seguinte, me juntei a um pequeno grupo para uma caminhada de dia inteiro no Monte Gower, de 875 metros de altura, localizado na ponta sul da ilha, ao lado do Monte Lidgbird.

Nosso guia, Jack Shick, é um morador de quinta geração e um guia de montanha de terceira geração.

“Cerca de 170 espécies de pássaros marinhos e terrestres vivem ou visitam a ilha, onde eles não têm nenhum predador”, revela.

“Agora eu quero que todos vocês cantem alto.”

Fizemos isso, e os petréis que voavam sobre as nossas cabeças de repente pousaram curiosos, cambaleando desajeitadamente em nossa direção com as asas compridas abertas.

A caminhada se tornou cada vez mais surreal à medida que nos aproximávamos do cume do monte – em meio à floresta enevoada e cheia de musgo, me senti no mundo de Tolkein com árvores atrofiadas e retorcidas, orquídeas e samambaias gotejantes.

Mas por mais que eu estivesse fascinado pelas belezas naturais de Lord Howe, o mais gratificante foi testemunhar a paixão e determinação de uma comunidade unida em prol de proteger sua ilha de conto de fadas.

No escritório do Conselho da ilha, conheci um dos membros, Darcelle Matassoni, um morador de sexta geração, que saiu para estudar e trabalhar no continente em 1998.

“Depois que minha filha nasceu em 2014, percebi que seria negligência não permitir que ela crescesse neste ambiente”, ela me disse, explicando que voltou no ano seguinte, pegando sete empregos de meio período para sobreviver.

“Adoro pensar que os ‘dispositivos’ nesta ilha são máscaras, snorkels e bicicletas; trocamos legumes, verduras e frutas por ovos ou peixes; e vivemos ‘na estação'”, afirma.

“Fomos criados com a crença fundamental de que é nossa responsabilidade proteger nosso meio ambiente e modo de vida.”

Na mesma rua, no instigante Museu da llha de Lord Howe, cujo acervo abrange o patrimônio local, sua história e natureza, procurei o curador Ian Hutton, naturalista residente e autor de 10 livros sobre a ilha, incluindo A Guide to World Heritage – Lord Howe Island.

“As pessoas falam sobre as Ilhas Galápagos por causa da conexão com Darwin, mas há mais diversidade na Ilha de Lord Howe, e ela está bastante intacta – muito parecida com quando foi descoberta”, diz Hutton, ilhéu desde 1980.

“E nós estamos fazendo todo o possível para retornar a ilha ao seu estado original”, completa.

Gatos selvagens, cabras, porcos e, em 2019, ratos foram erradicados da ilha — eles haviam dizimado espécies da flora e fauna endêmicas.

Ao mesmo tempo, animais nativos à beira da extinção foram trazidos de volta, como o pássaro Hypotaenidia sylvestris (há cerca de 30 atualmente), além de um dos insetos mais raros do mundo, o Dryococelus australis, uma espécie de bicho-pau.

Lord Howe também é líder mundial na erradicação de ervas daninhas, reduzindo as infestações em 90% em um dos mais ambiciosos projetos do tipo em uma ilha habitada.

Desde 2001, o entusiasmo de Hutton foi canalizado para seu projeto Friends of Lord Howe Island, que trabalha com voluntários que pagam para visitar a ilha e passam metade do dia retirando ervas daninhas ou regenerando a vegetação.

“É uma forma mais econômica de visitar, além do que eles sentem que estão contribuindo para o futuro da ilha”, avalia.

“Já registramos 26.622 horas de trabalho voluntário, e algumas pessoas voltaram várias vezes.”

Moradores e visitantes também podem trabalhar juntos como cientistas cidadãos ao lado de conservacionistas do instituto LHI Conservation Volunteers para proteger a biodiversidade da ilha — desde o topo das montanhas até a base do parque marinho, de 460 quilômetros quadrados, que foi estabelecido em 1999.

“Protegemos Lord Howe do impacto do turismo que atinge alguns outros destinos, oferecendo programas de conservação em que tanto moradores quanto visitantes podem participar”, afirma a diretora executiva de turismo da ilha, Trina Shepherd.

Em 2018, devido a seu longo histórico de programas sustentáveis ​​e de conservação, o Conselho da Ilha de Lord Howe recebeu o principal prêmio ecológico da Austrália, o Gold Banksia.

E, no outono de 2019, os holofotes do turismo internacional se voltaram pela primeira vez para a ilha, quando o guia de viagem Lonely Planet a colocou entre as Top 10 regiões para visitar em 2020.

Como isso vai afetar este ambiente frágil, eu me perguntei?

“Embora estejamos orgulhosos com a indicação do Lonely Planet, não esperamos nenhuma mudança ou impacto significativo, já que nosso número de visitantes foi limitado há muito tempo”, diz Shepherd.

As reservas, no entanto, podem ter que ser feitas com mais antecedência devido à maior exposição.

“Certamente estamos recebendo mais solicitações”, afirma.

Esta foi minha terceira visita à Ilha de Lord Howe desde 1983. E, quando a viagem estava prestes a terminar, fiquei emocionada ao confirmar um fato notável e infelizmente raro atualmente: meu lugar favorito na Terra permaneceu encantadoramente retrô, sem aglomeração, pouco desenvolvido, fortemente voltado para a comunidade e ainda mais ecológico do que há 36 anos.

Ou seja, é possível.

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Fonte: G1