A complexa história do país criado na África para abrigar a população negra dos EUA

  • Alessandra Corrêa
  • De Washington (EUA) para a BBC News Brasil

Certificado de filiação à Sociedade Americana de Colonização. A organização foi criada em 1816 e era composta por homens brancos, muitos deles proprietários de escravos

Crédito, Library of Congress

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Certificado de filiação à Sociedade Americana de Colonização: organização foi criada em 1816 e era composta por homens brancos, muitos deles proprietários de escravos

Quando os primeiros americanos negros desembarcaram na costa oeste da África, 200 anos atrás, eles estavam fazendo o caminho inverso de seus antepassados, que ao longo de mais de dois séculos haviam sido levados à força do continente africano e escravizados na América.

Esses pioneiros, muitos deles recém-libertos da escravidão e outros filhos de escravizados já nascidos livres, estabeleceram no local uma colônia que seria batizada de Libéria, ou “terra da liberdade”.

Eles deixaram para trás a sociedade escravista dos Estados Unidos, onde, mesmo depois de livres, continuavam enfrentando preconceito, desigualdades e inúmeras limitações. No novo lar, buscavam construir uma vida com mais oportunidades e direitos políticos.

O bicentenário da chegada desses primeiros colonos está sendo celebrado pelo governo liberiano com uma série de eventos ao longo deste ano. As comemorações foram iniciadas em fevereiro, com uma cerimônia que teve a presença de uma delegação dos Estados Unidos e de chefes de Estado de várias nações africanas.

Mas a história da criação desse país na África para abrigar os ex-escravizados dos Estados Unidos é complexa.

Enquanto muitos americanos negros livres já encabeçavam décadas antes o movimento que defendia o retorno à África, o início da colonização do que se tornaria a Libéria foi incentivado e patrocinado por uma organização formada por homens brancos, vários deles proprietários de escravos.

“O movimento de retorno à África foi iniciado por pessoas negras”, diz à BBC News Brasil o historiador Ousmane Power-Greene, professor da Clark University, no Estado de Massachusetts, e autor de livros sobre o projeto de colonização.

“Mas, ao mesmo tempo, há aqueles que se uniram ao movimento porque queriam deportar (os americanos negros livres). Estavam entusiasmados com a ideia de se livrar das pessoas negras (que moravam nos Estados Unidos)”, ressalta.

Sociedade Americana de Colonização

No início do século 19, décadas antes da Guerra Civil americana (1861-1865), que levaria ao fim da escravidão nos Estados Unidos, muitos no país já debatiam o que fazer com a população negra livre caso essa instituição fosse abolida.

Foi em busca de respostas para essa questão que, em 1816, um grupo de homens brancos reunidos no hotel Davis, em Washington, fundou a American Colonization Society (Sociedade Americana de Colonização, ou ACS, na sigla em inglês).

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Mapa da costa oeste africana em 1830, incluindo a colônia da Libéria, que começou a ser colonizada por americanos negros em 1822

Criada meio século antes da abolição da escravidão no país, a ACS contava com o apoio de nomes ilustres, entre eles o presidente na época, James Madison (1809-1817), o ex-presidente Thomas Jefferson (1801-1809) e os futuros presidentes James Monroe (1817-1825) e Andrew Jackson (1829-1837).

Os integrantes da ACS tinham opiniões diversas e, muitas vezes, contraditórias em relação à escravidão.

Alguns eram abolicionistas e tinham o desejo genuíno de ajudar a população negra a construir uma vida melhor na África. Outros, porém, rejeitavam a ideia de abolição e acreditavam que pessoas negras livres não deveriam continuar vivendo nos Estados Unidos, porque poderiam colocar em risco a instituição da escravidão.

Muitos proprietários de escravos na época temiam que o crescente número de libertos pudesse fomentar rebeliões entre os ainda escravizados, e tentavam impedir que convivessem. Em alguns casos, proprietários de escravos chegavam a oferecer alforria com a condição de que os recém-libertos aceitassem se mudar para a África.

Outros membros da ACS defendiam o fim da escravidão de maneira gradual, mas também temiam os efeitos da integração e rejeitavam a ideia de que negros livres e brancos pudessem conviver lado a lado.

Apesar dessa diversidade de posições, os integrantes da ACS concordavam com um projeto de colonização na África, que estabeleceria naquele continente um lar para os libertos e reduziria assim o número de pessoas negras livres vivendo nos Estados Unidos.

A ideia ganhou popularidade, e várias sociedades estaduais de colonização logo começaram a surgir ao redor do país, seguindo o mesmo modelo.

“É uma organização racista? É antiescravidão? A resposta é mais complexa”, afirma Power-Greene, lembrando que a ACS passou por várias fases ao longo de décadas.

Movimento de retorno à África

Apesar de a ACS ter sido fundada por homens brancos, na época o movimento de retorno à África já era popular entre a população negra. Mesmo antes da abolição da escravidão, diversas comunidades de americanos negros livres se espalhavam pelo país.

“É nessas comunidades que as atividades do movimento de retorno à África estão acontecendo, essas ideias estão se desenvolvendo”, diz à BBC News Brasil o historiador Herbert Brewer, professor da Morgan State University, em Baltimore, e especialista na diáspora africana.

“É importante entender que o movimento de retorno à África é anterior à ACS”, observa Brewer. “Ainda no século 18, pessoas negras nos Estados Unidos já estavam pensando e escrevendo sobre diferentes projetos para repatriar os afrodescendentes para a África.”

Alguns americanos negros acreditavam que só poderiam escapar da discriminação e desfrutar de uma vida verdadeiramente livre e próspera se voltassem para a África, terra de seus antepassados. Muitos tinham orgulho de sua herança africana.

“Os Estados Unidos dos anos 1820 eram um lugar peculiar para uma pessoa negra livre”, salienta Brewer. “Você era legalmente e tecnicamente livre mas, na realidade, e em termos de vários tipos de leis existentes na época, você estava excluído da vida pública.”

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Joseph Jenkins Roberts, um americano nascido no Estado da Virgínia que havia chegado à Libéria em 1829, foi o primeiro presidente após a independência do país, em 1847

Mas outros rejeitavam a ideia de deixar o país onde muitos deles haviam nascido e que haviam ajudado a construir com seu trabalho, e defendiam o direito a uma cidadania plena.

Nesse contexto, a criação da ACS foi recebida com divisões entre a população negra livre.

Muitos criticavam o projeto como um plano racista, apoiado por proprietários de escravos, para evitar a integração, deportar os negros e tornar a instituição da escravidão mais segura. Mesmo entre pessoas negras que defendiam a ideia de deixar o país, havia desconfiança sobre as reais intenções dos membros da ACS.

Outros, no entanto, viram na organização a oportunidade e os recursos financeiros necessários para colocar em prática o antigo projeto de retorno à África. “Para eles, essa aliança era um casamento de conveniência”, destaca Brewer.

“É difícil enfatizar como essa questão é complexa”, afirma Brewer. “Algumas pessoas eram favoráveis e depois mudaram de posição. Alguns queriam ir para a África e depois desistiram. Outros eram contra a ideia e depois decidiram ir.”

Em busca de terras para a colônia

Na época da criação da ACS, a Coroa Britânica já havia estabelecido uma colônia na Costa Oeste da África, Serra Leoa, para receber ex-escravizados, muitos dos quais haviam fugido dos Estados Unidos para o Canadá depois da Revolução Americana.

O sucesso desse projeto contribuiu para que a ACS ganhasse popularidade e, em 1818, a associação enviou representantes à África com a missão de encontrar um local ideal para instalar sua colônia. Esses enviados, porém, enfrentaram resistência inicial por parte dos líderes locais, que não queriam vender suas terras.

Dois anos depois, três membros da ACS e 88 americanos negros livres embarcaram em Nova York e cruzaram o Atlântico. Eles se instalaram na ilha Sherbro, na costa de Serra Leoa, mas enfrentaram grandes dificuldades, e muitos morreram de malária.

A ACS continuou buscando um local propício para a colônia até que, em 1821, conseguiu comprar de líderes locais uma faixa de terra de cerca de 58 km de comprimento e 5 km de largura na região costeira de Cabo Mesurado. O pagamento foi feito com rum, armas, mantimentos e outras mercadorias no valor de US$ 300.

A chegada da ACS e dos colonos americanos provocou divisões entre os moradores locais, que pertenciam a vários grupos étnicos e viviam em comunidades acostumadas a séculos de contatos com europeus.

“Há estereótipos preconceituosos e racistas sobre a África que afetaram a narrativa sobre a fundação da Libéria”, observa Brewer. “Uma das distorções é a de que os africanos eram povos primitivos, isolados, sem exposição nem conhecimento do mundo.”

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Primeira-dama Jane Roberts: imigrantes recriaram na Libéria muitos aspectos da sociedade americana, mantendo a língua inglesa, os costumes, vestimentas e estilo arquitetônico dos EUA

“Eles estavam interagindo com navios que chegavam à costa desde os anos 1400, eram parte do comércio transatlântico, que incluía a escravidão”, destaca Power-Greene.

Power-Greene lembra que a chegada da ACS e dos colonos americanos interferiu nesse sistema de comércio, que envolvia não apenas o tráfico de pessoas, mas a venda de comida e outras mercadorias aos navios, com impacto em toda a economia da região.

“Parte da oposição vinha dos africanos que participavam do comércio de escravos”, complementa Brewer, lembrando que esse aspecto também caracteriza a fundação da Libéria como parte do movimento abolicionista.

Dificuldades e tensões iniciais

O assentamento instalado no local recebeu seus primeiros moradores vindos dos Estados Unidos em abril de 1822. O grupo que havia desembarcado dois anos antes na ilha Sherbro também se transferiu para a nova área.

Apesar de criada para abrigar americanos negros, a colônia era inicialmente administrada por um representante branco da ACS. Em 1824, recebeu o nome de Libéria, e sua capital foi batizada de Monróvia, em homenagem ao então presidente americano, James Monroe, que havia garantido financiamento para o projeto.

Novas aquisições de terra ampliaram o território da colônia, que recebeu mais de 13 mil americanos nas décadas seguintes. Outros milhares foram enviados à região depois de serem resgatados de navios que operavam ilegalmente após a proibição do tráfico transatlântico de escravos.

Sociedades estaduais, inspiradas pela ACS, também começaram a adquirir terras próximas e enviar americanos negros a assentamentos na região, expandindo assim a colônia.

O período inicial foi repleto de desafios, com doenças que mataram milhares nos primeiros anos e ataques de grupos hostis. Os imigrantes eram descendentes de africanos, mas a maioria havia nascido nos Estados Unidos e não tinha familiaridade com a língua ou os costumes locais.

Mesmo entre os nascidos na África, poucos tinham lembranças da terra da qual haviam sido levados muito jovens. Além disso, diante da vastidão e da diversidade do continente, era pouco provável que seus antepassados viessem da mesma região para a qual estavam imigrando.

“As pessoas vindo para a África devem esperar passar por muitas dificuldades, que são comuns (no primeiro assentamento) em qualquer novo país”, escreveu o americano William Burke em carta de 1858.

Em 1853, pouco tempo depois de serem emancipados, Burke e a mulher, Rosabella, embarcaram com os quatro filhos em um navio que partiu da cidade americana de Baltimore rumo à Libéria. Treinado como ferreiro, Burke estudou latim e grego no novo lar e se tornou ministro presbiteriano.

Suas cartas, guardadas pela Biblioteca do Congresso americano, descrevem não apenas as dificuldades enfrentadas pelos pioneiros, mas a satisfação com a nova vida. “Eu amo a África e não trocaria pela América”, escreveu Rosabella em 1859.

“Eu esperava e não fiquei decepcionado ou desencorajado com nada do que encontrei”, escreveu Burke. “O senhor me abençoou abundantemente desde minha residência na África, pelo que sinto que nunca poderei ser grato o suficiente.”

Esses primeiros imigrantes recriaram na Libéria muitos aspectos da sociedade americana, mantendo a língua inglesa, os costumes, vestimentas e estilo arquitetônico a que estavam acostumados nos Estados Unidos.

Os anos iniciais foram marcados não apenas por conflitos, provocados principalmente pela expansão do território, mas também por integração entre a população nativa e os recém-chegados, que construíram escolas, igrejas e criaram laços com os habitantes locais.

Brewer salienta que essa integração gerou uma sociedade híbrida, com reflexos na cultura, na língua, na comida e em outros aspectos presentes até hoje.

Independência e guerra civil

Em 1847, a colônia declarou sua independência da ACS e se tornou a segunda república negra do mundo, depois do Haiti. Joseph Jenkins Roberts, um americano negro nascido no Estado da Virgínia que havia chegado à Libéria em 1829, foi eleito presidente.

Apesar de seu papel na criação da Libéria, Washington não reconheceu imediatamente a nova nação, temendo os possíveis impactos sobre a questão da escravidão nos Estados Unidos. Os dois países só iriam estabelecer relações diplomáticas em 1862, em meio à Guerra Civil americana.

Nos Estados Unidos, a proposta de que os ex-escravizados fossem de forma voluntária para a África ou para territórios nas Américas continuou a ser defendida por décadas. Mas cada vez mais abolicionistas passaram a se posicionar contra a ideia de colonização e, na virada do século, a ACS havia perdido importância.

Entre a população negra, porém, o movimento de retorno à África continuou ganhando adeptos. A Libéria e outras nações africanas receberam novas ondas de americanos negros durante várias décadas, inclusive nos anos 1960, no auge do movimento de defesa dos direitos civis nos Estados Unidos.

“A popularidade das ideias sobre o retorno à África aumentou e diminuiu e aumentou de novo, dependendo das circunstâncias”, destaca Brewer

No final da década de 1980 a Libéria enfrentou uma brutal guerra civil que deixou mais de 200 mil mortos. Uma das alegações costuma ser a de que as tensões e desigualdades entre os imigrantes e a população nativa, décadas antes, tiveram papel crucial nas origens desse conflito.

A crítica é a de que os liberianos de origem americana formaram uma elite que explorou e discriminou os habitantes locais. Mas Brewer, Power-Greene e outros historiadores enfatizam que isso ocorreu quase cem anos após a chegada dos primeiros colonos, e não é fruto da fundação do país.

“Parte das alegações de exploração ocorre nos anos 1920, quando a Firestone se envolve”, diz Power-Greene, referindo-se à fábrica de pneus fundada nos Estados Unidos que, em 1926, instalou na Libéria uma das maiores plantações de borracha do mundo e passou a dominar a economia e a política do país nas décadas seguintes.

Crédito, Library of Congress

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Residência do presidente Joseph Jenkins Roberts, na capital, Monróvia: americanos que chegaram à Libéria buscavam construir uma vida com mais liberdade, direitos políticos e oportunidades

“Os liberianos (no século 19) não tinham capacidade de criar uma casta racial, como muitas vezes é chamada, que tivesse muito significado. Eles respondiam por apenas 3% da população total na área que seria chamada de Libéria”, observa Power-Greene.

Os historiadores ouvidos pela BBC News Brasil ressaltam que o sistema de casta social não foi criado no século 19, com os pioneiros, e sim no século 20, com a chegada de grandes empresas para explorar os recursos naturais do país.

“Quem tirou a terra da população na Libéria? Foram as grandes multinacionais”, critica Brewer. “(Mas) algumas pessoas querem atribuir à fundação do país os erros, os males, os problemas, as disfunções que surgiram (décadas) depois.”

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Fonte: BBC

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