A incrível história de Ana Montes, a “rainha de Cuba” que passava informações secretas dos EUA a Havana

  • Ángel Bermúdez (@angelbermudez)
  • Da BBC News Mundo

Ana Montes

Crédito, FBI

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Ana Montes foi detida em setembro de 2002

“A Rainha de Cuba” foi a expressão usada por membros da comunidade de inteligência dos Estados Unidos para se referir a Ana Montes. Na prática, o mesmo apelido poderia ter sido atribuído a ele pelos serviços secretos de Havana.

Montes tornou-se a principal analista dedicada a questões políticas e militares da ilha dentro da Agência de Inteligência de Defesa dos Estados Unidos (DIA, na sigla em inglês), onde desenvolveu uma carreira de sucesso entre 1985 e 2001.

Nesse período, Montes ganhou várias promoções, bem como dez prêmios especiais por seu trabalho, incluindo um Certificado de Distinção de Inteligência Nacional (o terceiro maior prêmio na área) concedido a ela em 1997 pelo então diretor da CIA, George Tenet.

No entanto, o lugar onde realmente deveriam ser gratos pelos serviços ​​de Montes era a Cuba de Fidel Castro, para a qual ela trabalhou como espiã durante seus anos a serviço do DIA, dando a Havana acesso a informações altamente confidenciais.

“No primeiro dia em que entrou na Agência de Inteligência de Defesa, Montes já era uma agente recrutada em tempo integral pelo Serviço de Inteligência cubano. Todos os dias ela ia trabalhar, seu objetivo era memorizar as três coisas mais importantes que ela achava que os cubanos precisavam saber para se proteger dos Estados Unidos”, diz à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) Peter Lapp, um dos dois agentes do FBI encarregados da investigação realizada contra Montes, que levou à sua captura em 2001 e posterior condenação a 25 anos de prisão por espionagem.

“Ela está entre os espiões mais importantes que o governo dos Estados Unidos prendeu desde a Segunda Guerra Mundial e é uma das que causaram mais danos na história moderna deste país”, acrescenta Lapp, que também foi encarregado de entrevistar Montes durante os sete meses que se seguiram à sua prisão para entender o alcance de seu trabalho para Havana.

Como resultado dessa experiência e com as investigações posteriores, Lapp escreveu o livro “A Rainha de Cuba”, cuja publicação está prevista para outubro deste ano, poucos meses após a saída de Montes da prisão sob liberdade condicional, prevista para estes primeiros dias de janeiro de 2023.

Mas quem é Ana Montes e como ela conseguiu espionar o governo dos Estados Unidos por tantos anos sem ser descoberta?

De aluna exemplar a espiã

Filha de pais porto-riquenhos, Ana nasceu em 1957 em uma base militar americana na Alemanha, onde seu pai trabalhava como médico. A família então se mudou para Kansas, Iowa e, eventualmente, Maryland, onde Ana terminou o ensino médio com nota máxima.

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Em 1997, Ana Montes recebeu um reconhecimento do então diretor da CIA George Tenet.

Enquanto cursava Relações Internacionais na Universidade da Virgínia, fez uma viagem de estudos à Espanha em 1977, onde conheceu um estudante de esquerda argentino que supostamente “abriu seus olhos” para o apoio dado pelo governo dos Estados Unidos aos regimes autoritários da época, segundo disse Ana Colón, ex-colega de classe, ao jornal “The Washington Post” em 2013.

“Depois de cada protesto, Ana me explicava as ‘atrocidades’ que o governo dos Estados Unidos cometia contra outros países”, conta Colón.

Depois de obter seu diploma de bacharel, Montes mudou-se para Porto Rico, onde não conseguiu encontrar trabalho. Logo depois acabou aceitando uma oferta de emprego no Departamento de Justiça em Washington.

Enquanto trabalhava lá, ela decidiu fazer um mestrado na Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins, onde a espionagem cubana descobriu seu potencial e decidiu recrutá-la.

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Montes estudou na prestigiosa Universidade Johns Hopkins, visitada frequentemente por autoridades como o ex-secretário geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen.

“Ela foi descoberta e avaliada por uma colega chamada Marta Rita Velázquez, também porto-riquenha. Ana expressou abertamente sua raiva e insatisfação com a política dos EUA na Nicarágua e em El Salvador. Marta ficou amiga dela e foi assim que ela também soube que ela trabalhava na Departamento de Justiça e que tinha acesso a informações classificadas. Então, alguns meses depois, ela a apresentou a um diplomata que trabalhava na missão cubana na ONU”, diz Lapp.

Foi assim que Montes acabou sendo recrutada como espiã cubana.

Dinheiro e ideologia

Montes concordou em trabalhar para os cubanos, embora tenha dito aos investigadores que nunca havia pensado nessa possibilidade antes.

E, embora fosse um trabalho arriscado e em tempo integral, ela não cobrava por isso.

“Ela não recebeu nenhum pagamento, o que leva as pessoas a pensar que ela era uma espiã por motivos ideológicos. Na verdade, ela nos disse que ficaria ofendida se os cubanos lhe dessem dinheiro para espionar”, diz Lapp.

De fato, uma vez descoberta e detida, Montes assegurou que agiu motivada pela necessidade de justiça, tentando ajudar os cubanos a se protegerem das políticas dos Estados Unidos.

“Acredito que a política de nosso governo em relação a Cuba é cruel, injusta e profundamente hostil. E me senti moralmente obrigada a ajudar a ilha a se defender de nossos esforços para impor nossos valores e nosso sistema político”, disse Montes quando chegou sua vez de comparecer à Justiça, em outubro de 2002.

Um relatório da CIA, citado pelo “The Washington Post”, considera que os agentes cubanos a manipularam, apelando a seu narcisismo e fazendo-a acreditar que Havana precisava urgentemente da sua ajuda.

“Seus manipuladores, com sua ajuda involuntária, avaliaram suas vulnerabilidades e exploraram suas necessidades psicológicas, ideologia e patologia de personalidade para recrutá-la e mantê-la motivada a trabalhar para Havana”, disse a CIA.

Ao contrário de outros, Lapp não acredita que Montes tenha agido motivada por uma ideologia de esquerda, mas sim por uma profunda rejeição ao próprio país.

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Uma das motivações de Montes para espiar para Cuba era seu rechaço às políticas de Ronald Reagan na América Central.

“Acho que ela era mais antiamericana, que estava muito chateada com o que o governo dos Estados Unidos estava fazendo em El Salvador e na Nicarágua na época, e com sua política em relação a Cuba. Não concordo com quem diz que ela era uma espiã motivada por ideologia. Ela era idealista, mas era mais antiamericana do que pró-cubana”, diz.

“Ela estava com muita raiva de Ronald Reagan e do que estávamos fazendo. E ela realmente odiava nosso país. Até hoje acho que ela ainda odeia nosso país. Tecnicamente ela é americana, mas se considera uma cidadã do mundo, ela é mais uma antiamericana do que alguém que acredita no sistema cubano, no socialismo e no marxismo”, acrescenta.

Sucesso em Washington e Havana

Em 1985, Montes fez a primeira de várias viagens a Havana. Ele então realizaria outras, algumas pagas pelo próprio governo dos Estados Unidos, durante as quais seus encontros diurnos com funcionários da Seção de Interesses dos Estados Unidos na ilha eram seguidos por encontros noturnos com seus chefes cubanos.

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Em suas viagens a Cuba, Montes se reunia com funcionários da Seção de Interesses dos EUA em Havana durante o dia e com seus chefes cubanos à noite.

Foram os cubanos que aparentemente a incentivaram a se candidatar ao DIA e que mais se beneficiariam com sua carreira ascendente como analista, na qual acabaria apresentando seus relatórios a membros do Estado-Maior Conjunto e do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos. E, de fato, pouco antes de sua prisão, ela estava prestes a ser promovida a um cargo no Conselho de Inteligência Nacional, órgão que assessora a diretoria da CIA.

Lapp destaca que Montes era uma analista muito boa, o que na prática acabou favorecendo sua carreira em Washington e suas contribuições com Havana.

“Se ela tivesse simplesmente sentado em sua mesa e deixado as horas passarem, ela não teria se tornado a ‘rainha de Cuba’. Ela era uma analista muito boa e quanto melhor fazia seu trabalho, mais portas se abriam para ela e mais acesso ela conseguiu. Portanto, se ela fosse competente em seu trabalho diurno, mais informações poderia obter para seu trabalho noturno”, diz ele.

Espionagem clássica

Para evitar ser descoberta, Montes usou uma das ferramentas de espionagem mais seguras: sua própria memória. Passava horas sentada em sua escrivaninha para ler e memorizar as informações sigilosas que considerava interessantes para Havana, que depois transcreveria à noite em um laptop Toshiba em casa e que, por fim, copiaria em disquetes que entregaria aos seus contatos cubanos. Dessa forma, nunca teve que levar nenhum documento do escritório.

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Para decifrar mensagens enviadas por seus contados cubanos, Montes usava um papel solúvel em água.

Às terças, quintas e sábados, Montes usava um rádio de ondas curtas para ouvir uma das chamadas “estações numéricas”, uma estação de rádio em que às 21h e 22h uma voz dizia coisas como: “Atenção, atenção: três, um, quatro , cinco…”. Esses números tinham que ser decifrados por meio de uma folha de código que os cubanos lhe entregaram. O procedimento era feito em um papel solúvel em água. Em caso de emergência, bastava jogá-lo no vaso sanitário para fazê-lo desaparecer como evidência.

Foi assim que ela recebeu suas instruções.

No entanto, ao entregar as informações coletadas, costumava almoçar com seu contato cubano em plena luz do dia.

“Ela simplesmente ia almoçar com eles e entregava o disquete. Simples assim. Sem esconderijos secretos, sem brush passes [breves contatos físicos para troca de objetos], sem técnicas sofisticadas de espionagem, era apenas um homem e uma mulher hispânicos tendo um longo almoço em um restaurante chinês em uma tarde de domingo”, diz Lapp.

Para casos urgentes, Montes poderia fazer ligações de cabines telefônicas públicas para pagers de seus contatos cubanos. Ele tinha um código para alertá-los de que estava em perigo e outro para alertá-los de que precisava vê-los.

Inteligência comprometida

Na opinião de Lapp, as atividades de espionagem de Montes causaram grandes danos à inteligência dos EUA.

“Cada um dos indivíduos que ela conheceu e que trabalhavam para o governo dos Estados Unidos, independentemente de o fazerem abertamente ou secretamente, foram identificados por ela antes de Havana, e com isso os cubanos conheciam todos os que trabalhavam na ilha para o governo dos EUA”, diz.

“Ela comprometeu grandes quantidades de informações classificadas que encontramos em seu computador. Ela também identificou quatro agentes de inteligência dos Estados Unidos que foram trabalhar em Cuba secretamente como parte de outras agências e sob outros nomes”, acrescenta.

No entanto, Lapp considera que provavelmente o maior dano causado foi a transferência para Cuba de informações sobre um programa de satélite altamente sensível que pertencia ao Escritório Nacional de Reconhecimento e que era tão secreto que não foi incorporado à acusação contra Montes perante os tribunais para impedir que fosse conhecido publicamente.

O ex-agente do FBI também acredita ser possível que Montes tenha participado do assassinato de um Boina Verde (agente das Forças Especiais das Forças Armadas dos Estados Unidos) ocorrido em El Salvador.

“Não podemos provar, mas acredito fortemente que ela provavelmente informou aos cubanos sobre quem ele era, onde estava, o que estava fazendo e qual era sua missão. Eu sei o que ela nos disse sobre essa hipótese e ela realmente não se importava se ele morreu ou não como resultado disso”, diz Lapp.

“Não posso provar, mas acho que ela tem sangue nas mãos”, acrescenta.

Outro episódio polêmico em que Montes participou ocorreu quando aviões de guerra cubanos abateram em fevereiro de 1996 dois aviões pertencentes à organização Hermanos al Rescate, que se dedicava a ajudar os cubanos a escapar em jangadas da ilha, causando a morte de quatro pessoas.

Naquela época, Montes participava da equipe de resposta do governo dos Estados Unidos a essa crise e, ao mesmo tempo, era muito ativa na colaboração com o governo cubano.

“Na noite seguinte, depois que ela voltou do Pentágono, ela se encontrou com os cubanos e contou a eles como estávamos reagindo. E ela se encontrou com eles todas as noites, depois que mataram quatro cidadãos americanos. Então, não estou dizendo que ela puxou o gatilho e quatro americanos foram mortos, mas ela se sentou com as pessoas que fizeram isso – com o governo e os serviços de inteligência que ajudaram a fazer isso acontecer – e cooperou com eles, deixando-os saber como os EUA iriam reagir. Isso é horrendo”, diz Lapp.

Paradoxalmente, pouco antes de ser presa, Montes estava a caminho de se colocar em uma posição em que poderia ter causado muitos danos aos Estados Unidos, já que teria acesso aos planos militares americanos para a guerra no Afeganistão. Algo que, segundo os analistas, forneceria ao governo cubano informações muito valiosas que poderiam ser repassadas ao Talibã ou ao governo afegão.

O que impediu que isso acontecesse foi que naquela época as investigações contra Montes já duravam 11 meses e, após os atentados de 11 de Setembro, decidiu-se acelerar sua prisão para evitar maiores riscos.

Uma vez detida, em 21 de setembro de 2001, Montes negociou um acordo com as autoridades dos Estados Unidos no qual cooperaria plenamente com os investigadores sob a condição de não receber uma sentença superior a 25 anos de prisão.

Essa colaboração plena resultou em interrogatórios aos quais Montes se submeteu duas ou três vezes por semana durante sete meses para fornecer ao FBI todos os detalhes necessários.

Lapp acredita que isso pode ter influenciado o fato de Havana aparentemente não ter demonstrado muito interesse em sua libertação.

“Eu especulo que eles não estão muito entusiasmados com o fato de ela se declarar culpada ao governo dos Estados Unidos e depois se sentar para um interrogatório completo. Tenho a sensação de que ela causou muitos danos aos cubanos quando falou. Eu me pergunto se os cubanos estão um pouco bravos com ela”, diz ele.

Se assim for, Ana Montes não seria mais considerada “a rainha de Cuba” nem em Washington nem em Havana.

Fonte: BBC