As agressões brutais e os abusos sexuais em trotes de times esportivos em escolas e universidades

Ilustração de um time de futebol americanoDireito de imagem Katie Horwich
Image caption Nos Estados Unidos e no Canadá, estudantes denunciaram terem sido vítimas de agressões físicas e estupros durante rituais de iniciação para se juntarem a times estudantis

Atenção: essa matéria contém descrições de crimes sexuais.

Rituais de iniciação humilhantes e violentos têm sido, durante muito tempo, um segredo brutal compartilhado entre times esportivos de escolas e universidades. Mas, em tempos de #MeToo (hashtag usada para compartilhar casos de violência e assédio sexual), as vítimas adolescentes de trotes agressivos estão preparadas para quebrar o silêncio?

Quando Allison Brookman chegou à escola de ensino médio Reed Custer, nos Estados Unidos, para pegar seu filho Anthony, de 14 anos, que estava treinando no campo de futebol americano, percebeu que algo estava errado. “Você pode sentir quando seu filho está triste ou magoado”, afirmou.

Depois da insistência da mãe, o garoto disse que “apenas” tinha apanhado de um grupo de quatro jogadores mais velhos. Mas, levado para o hospital para ter os ferimentos examinados, narrou o que realmente tinha acontecido: além de ter apanhado, foi abusado sexualmente pelos membros do time, como parte de um humilhante e violento trote de ingresso.

“O primeiro cara que me bateu duas vezes e me levou ao chão, ele me chutou no lado direito das minhas costelas”, contou Anthony, em entrevista para a CBS. “Enquanto o quarto jogador tirou meus shorts e puxou minhas pernas para cima, para que ele pudesse colocar os dedos no meu… você sabe… numa parte do meu corpo”.

A mãe de Anthony, Allison, lembra que ficou horrorizada quando ouviu o relato. “Meu filho olhou para nós e disse: não se preocupe, mãe, não se preocupe, pai, eles não entraram em mim.”

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Image caption Anthony Brookman relata que tinha apenas 14 anos quando foi atacado e abusado por colegas de time durante um trote de iniciação

Agora, a família está processando a escola, alegando que a instituição falhou ao prevenir o abuso sexual relatado e que não reagiu adequadamente ao episódio. Já o responsável pela escola, Mark Mitchell, afirma que os jogadores foram punidos. Três dos acusados eram menores de idade quando o caso foi contado por Anthony Brookman.

Conforme o caso avança na Justiça, outros episódios similares estão vindo à tona.

Também nos Estados Unidos, quatro membros do time de futebol da escola de ensino médio Damascus, no Estado de Maryland, foram acusados de estuprarem um colega de time mais novo com um cabo de vassoura. Ainda foram acusados de tentativa de estupro de outros adolescentes. Os crimes teriam sido cometidos durante um trote.

Os promotores deram detalhes assustadores. Primeiro, os quatro jogadores mais velhos encurralaram outros quatro novatos no vestiário. Um deles disse: “é a hora”. Então, os mais velhos se reuniram em volta da primeira vítima, a seguraram de cabeça para baixo e a sodomizaram com o cabo de vassoura.

Os acusados serão julgados como adultos. Já um quinto suspeito será julgado como menor de idade.

Outro caso ocorreu em Toronto, no Canará. Sete meninos de 14 anos e 15 anos, todos jogadores de futebol da escola de ensino médio St Michael, são acusados de terem abusado coletivamente de outros rapazes, como parte de trotes de iniciação no time, em três diferentes ocasiões. Em um desses casos, um vídeo mostrando um colega de time sendo penetrado por uma vassoura foi compartilhado online.

Todos esses casos de abuso sexual reacenderam o debate para acabar com o trote no esporte. E, em tempos de #MeToo, muitas pessoas que foram vítimas no passado estão agora vindo à público para compartilhar suas histórias.

O que é o trote em rituais de iniciação no esporte estudantil?

O trote de iniciação – hazing, em inglês – é um ritual em que membros de um grupo humilham ou ferem novos membros como parte de um rito de passagem.

“Estamos falando de forças poderosas – querer pertencer a um grupo, uma comunidade”, diz Jay Johnson, professor da Universidade de Manitoba, no Canadá, especialista em trotes de iniciação no esporte.

O trote pode ser inofensivo – por exemplo, forçar os novos membros do time a carregarem os equipamentos esportivos para as partidas, ou cantar músicas bobas no campus universitário. Mas também pode envolver agressões brutais e abusos sexuais.

Geralmente, o trote esportivo é associado a grêmios e clubes atléticos em universidades. Mas escolas de ensino médio não estão imunes à prática. Uma pesquisa realizada em 2000 pela Universidade Alfred, nos Estados Unidos, revelou que metade dos estudantes de Ensino Médio nos Estados Unidos relataram ter participado de trotes. E 14% disseram ter sido vítimas.

Nos Estados Unidos, 44 Estados já baniram o trote de iniciação. No Canadá, muitas universidades e organizações esportivas têm políticas anti-trote, mas não há nenhuma lei federal proibindo essa prática – assim como no caso de St Michael, a polícia se baseia em leis relacionadas a atos de agressão para julgar crimes cometidos durante trotes.

No Reino Unido, a União de Rugby, ligada ao governo, afirmou que as iniciações realizadas em times universitários acabam afastando as pessoas do esporte. Segundo o órgão, essas tradições estão entre as culpadas por cerca de 10 mil pessoas terem deixado de praticar rúgbi recentemente.

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Image caption Trotes podem ser inofensivos, mas também violentos e perigosos

Quando o trote se torna um crime?

Muitos dos estudantes que foram vítimas de trotes violentos enfrentam dificuldade de entender que, de fato, foram vítimas. Segundo Johnson, isso ocorre porque parte das atividades pode parecer inofensiva, como se isso fosse necessário para “ser parte do time”. Mas o trote pode ficar assustador – algumas das práticas, inclusive, podem resultar em intoxicação por álcool e levar à morte.

O abuso sexual durante o trote também é comum, diz Johnson. Dos Estados Unidos até a Austrália, há relatos de abuso sexual cometidos por times esportivos estudantis.

Uma investigação da Associated Press, de 2017, descobriu 70 casos de abuso sexuais cometidos por colegas de times esportivos em escolas públicas americanas, ao longo de cinco anos. Segundo o veículo jornalístico, essa era apenas “a ponta do iceberg”.

Os casos apresentados são chocantes, tanto no nível de violência como na semelhança entre si. Há relatos de vítimas sendo sodomizadas por colegas de time com punho da mão, garrafa de Gatorade e mangueiras de tanques de dióxido de carbono.

No começo deste ano, uma organização chamada “Fim do Estupro do Campus” lançou um relatório dizendo que a semana de recepção de calouros nas universidades australianas é chamada de “zona vermelha” por profissionais de saúde que lidam com abuso sexual, devido à combinação de agressões, trotes de iniciação e consumo excessivo de álcool.

Algumas vezes, basta uma pessoa mal intencionada para levar todo um time a cometer um abuso sexual, explica Johnson. “Basta apenas uma pessoa com poder, ou no topo da hierarquia. Um jogador veterano e sádico”.

Mas os rituais de trote violentos geralmente resultam de uma cultura tóxica dos times esportivos, acrescenta o professor. As tradições são passadas adiante, ano após ano. Assim, os agressores deste ano costumam ser as vítimas do ano passado. Frequentemente, treinadores e outras autoridades fazem vista grossa, afirma Johnson.

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Image caption Entre os relatos, estão vítimas sodomizadas por colegas de time com o punho da mão, garrafa de Gatorade e mangueiras

#MeToo no vestiário dos times

A história de Brookman e os casos de estupro em Maryland e em Toronto vieram à tona em uma era de escrutínio público sobre a violência sexual. De Hollywood até a Suprema Corte americana, as vítimas estão relatando como instituições poderosas silenciaram para proteger os agressores.

O esporte estudantil seria o próximo setor a denunciar abusos e crimes sexuais? Johnson diz que esses três casos mostram como as pessoas estão começando a enxergar o trote violento de forma diferente.

“Tenho esperança de que essa pode ser a centelha que vai abrir a porta para outros relatos, de forma semelhante com o que ocorreu com o movimento #MeToo”, afirma Johnson. “Que mais pessoas possam começar a dar um passo à frente e se sentirem empoderadas a contarem suas histórias.”

Há sinais de que isso já esteja começando. Em Toronto, jogadores proeminentes da Liga de Hóquei Nacional revelaram que foram vítimas de trotes sexuais quando jogavam em equipes júnior – da mesma forma que os alunos de St Michael.

Finalmente, é por isso que Anthony concordou a contar sua história para a imprensa. Segundo sua mãe, Allison, o filho lhe disse: “Você vê muitos trotes na TV, mas é só isso, é o repórter conversando com outros repórteres e uma foto da escola”.

“Ninguém nunca se prontifica (a falar). Eu quero que as pessoas vejam meu rosto e vejam o que as pessoas fizeram comigo.”

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Fonte: BBC