Como a extrema direita provocou um ‘terremoto’ na política alemã

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Image caption Protestos contra eleição na Turíngia compararam cumprimento de eleito com líder da extrema-direita (foto de baixo) à ascensão de Hitler (foto de cima)

Em fevereiro de 1930, Adolf Hitler estava com um humor radiante. “Nosso maior sucesso foi na Turíngia (estado do centro-leste alemão)”, ele escreveu à época. “Lá somos o partido mais significativo. Os partidos na Turíngia tentando formar um governo não conseguem assegurar a maioria sem a nossa cooperação.”

A Alemanha pode ter prometido “nunca mais” repetir os erros do período nazista. Mas, passados 90 anos, a extrema-direita, na figura do partido AfD, voltou a ocupar — mesmo que brevemente — o papel de maior influência naquele Estado alemão.

O AfD (Alternativa para a Alemanha) cresceu em popularidade recentemente, mas é amplamente condenado por suas visões extremistas quanto à imigração, à liberdade de expressão e à imprensa.

Na Turíngia, nesta quarta-feira (05/02), o AfD — liderado por um homem que pode, segundo decisão da própria Justiça alemã no ano passado, ser descrito como fascista — causou um terremoto político que levou milhares de alemães às ruas para protestar.

Até poucos dias atrás, muitos desses manifestantes nunca haviam ouvido falar de Thomas Kemmerich, do partido liberal Democratas Livres (o FDP, na sigla alemã).

O político regional foi, por pouco mais de 24 horas, inesperadamente elevado ao papel de primeiro-ministro estadual, graças aos votos dos políticos locais do AfD.

Kemmerich também recebeu votos de parlamentares regionais de seu partido, o FDP, e dos cristãos-democratas da premiê Angela Merkel (CDU). Isso despertou a ira de críticos, que passaram a afirmar que os dois partidos (que são de centro-direita) haviam sucumbido a um pacto com a extrema-direita.

Kemmerich negou ter cooperado com a extrema direita e acusou o AfD de ter realizado um “pérfido truque para prejudicar a democracia”.

Diante de uma grande pressão, Kemmerich chegou a anunciar sua renúncia. Nesta sexta-feira (07/02), porém, disse ter sido aconselhado a permanecer por mais um tempo para garantir que o governo “continue funcionando”.

Quebra de barreira

A situação põe em evidência a vulnerabilidade do que os alemães chamam de Brandmauer — a convenção, vigente há décadas, que tenta impedir a extrema-direita de exercer influência real sobre a política do país.

Muitos veem como uma vergonha nacional o fato de o AfD ter encontado um terreno eleitoral tão fértil em um estado localizado na antiga Alemanha Oriental.

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Image caption Thomas Kemmerich anunciou sua renúncia, mas voltou atrás

No âmbito nacional, a presença do partido no Bundestag (o Parlamento da Alemanha) gerou desconforto, e pode-se dizer que sua campanha centrada no combate à imigração e na identidade nacional rompeu com antigos tabus alemães e moveu toda a política à direita, à medida que o centro teve dificuldades em enfrentar o desafio eleitoral.

Mas o ocorrido na Turíngia nesta quarta causou um frio bem particular na espinha do país.

Kemmerich, do partido liberal e pró-mercado FDP, pode ter expressado oposição ao AfD. Mas mesmo assim ele aceitou o cargo de premiê regional — com uma maioria assegurada graças ao apoio da extrema direita.

Merkel sob pressão

O líder nacional do FDP, Christian Lindner, inicialmente pareceu aceitar o resultado, apesar da reação incrédula de outros integrantes de destaque em seu partido.

Acusado de buscar o poder a qualquer custo, Lindner foi lembrado de suas próprias palavras, em 2017, quando ele se absteve de negociar uma coalizão de governo com Angela Merkel, dizendo: “É melhor não governar que governar mal”.

Angela MerkelDireito de imagem EPA
Image caption Angela Merkel tratou episódio como ‘imperdoável’ e criticou membros de seu próprio partido

Merkel, por sua vez, descreveu como “imperdoável” o ocorrido na Turíngia e fez duras críticas a políticos regionais de seu próprio partido — que também apoiaram Kemmerich, despertando acusações de que, ao menos no âmbito local, o CDU (partido de Merkel) teria quebrado sua promessa de nunca unir forças com a extrema direita.

A líder do CDU, Annegret Kramp-Karrenbauer, vai discutir o assunto com seus colegas de coalizão neste fim de semana. E espera-se que o Partido Social Democrata, parceiro (relutante) dessa coalizão, busque garantias de que o CDU rejeite qualquer possibilidade de aproximação com o AfD e que o partido controle seus políticos regionais.

A própria Merkel está sob pressão, já que seu partido proibiu que seus correligionários na Turíngia buscassem uma aliança com o partido de esquerda Die Linke, o que pode tê-los empurrado para a extrema direita.

Além disso, o governo alemão tem consciência de que o cenário político está mudando no país — e que o AfD está tirando proveito disso.

Agora, espera-se que novas eleições sejam realizadas na Turíngia para definir outro líder regional.

De qualquer modo, para muitos, o episódio desta quarta evocou paralelos dolorosos.

O ex-premiê belga Guy Verhofstadt está entre os que foram às redes sociais protestar, circulando uma foto de Kemmerich (quando recém-eleito) cumprimentando o líder do AfD, Björn Höcke. Ao lado, ele compartilhou uma foto de Hitler cumprimentando o então presidente alemão, Paul von Hindenburg.

Há pouco mais de uma semana, nos eventos comemorando os 75 anos de libertação do campo nazista de Auschwitz, a Alemanha refletia sobre as atrocidades ocorridas durante a Segunda Guerra.

O fato de a extrema direita ter obtido tamanha influência na política local, de um partido convencional ter aceitado seu apoio e de que, com ou sem conhecimento, o partido de Merkel tenha parecido se alinhar com eles é, para muitos alemães, motivo de grande vergonha.

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Fonte: BBC