Morre Diego Maradona: como o craque personificou o lado dramático dos argentinos

  • Marcia Carmo
  • De Buenos Aires para BBC News Brasil

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Em uma entrevista ao jornal Clarin, quando fez 60 anos, Maradona disse que se arrependia do longo período de dependência química

O ex-jogador argentino Diego Armando Maradona será lembrado pelos dribles em campo, pelo chamado “gol da mão de Deus” e por suas atitudes também surpreendentes fora do futebol. Sua personalidade, marcada por atitudes apaixonadas e decisões imprevisíveis, se associa, de certa forma, à trajetória de seu próprio país, a Argentina, e ao lado dramático dos argentinos, na visão de analistas ouvidos pela BBC News Brasil.

A morte do craque, que era chamado de “Dios” (Deus) por seus torcedores, é associada a traços do estereótipo do país do tango.

“Ele era um passional, uma pessoa apaixonada por tudo o que fazia. Sem meio-termo. E neste sentido Maradona nos representou, representou um jeito de ser de muitos de nós, argentinos”, disse o analista político Raúl Aragón. O ex-jogador costumava dizer que tinha o direito de opinar sobre qualquer assunto. “Porque sou argentino e pago impostos”, dizia. Suas opiniões também eram, muitas vezes, voláteis, como é também a economia do país.

Ele, por exemplo, se emocionou quando foi recebido pelo então papa João Paulo 2º, em 1985. “Foi uma das coisas mais lindas que vivi”, disse, na época. Mas em 2000, ele criticou e chegou a usar um palavrão quando disse que o pontífice “distribuía beijos para crianças desnutridas” enquanto o Vaticano tem “teto de ouro”.

O ex-jogador era conhecido por não ter papas na língua. No mês passado, outubro, ele disse que as decisões do ex-presidente Mauricio Macri, que foi presidente do clube de futebol Boca Juniors, onde ele jogou, “ferraram a vida de muita gente”. Ele também tinha acusado integrantes da FIFA de corruptos. Quando foi expulso de uma partida, na Copa do Mundo de 1994, por ter sido flagrado num exame antidoping, o ex-craque da seleção argentina disse: “Cortaram minhas pernas”.

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Maradona era idolatrado pela maioria dos argentinos

Seu jeito de falar era admirado por seus torcedores, principalmente os mais simples, que se identificavam com ele, e, às vezes, repetiam suas frases e falavam como ele. Mas seu estilo, que incluía ameaças de deixar os clubes quando algo não lhe agradava, provocava rejeição entre seus críticos.

Sua morte provocou comoção na Argentina e em outros países. Logo depois da informação sobre seu falecimento, multidões de torcedores lotaram a porta dos estádios onde ele jogou, como o Boca Juniors. E, como no caso de outros personagens históricos do país, como a ex-primeira-dama Evita Perón, sua vida e sua morte geram controvérsias. “A polícia apreendeu seu prontuário médico. Haverá investigação para saber se Diego recebeu alta médica antes da hora”, disse um repórter da TV TN, de Buenos Aires. São fatos que contribuem para eternizar o mito, dizem em Buenos Aires.

Um comentarista comparou a comoção provocada pela morte do ex-jogador a mesma que o país viveu quando o cantor de tangos Carlos Gardel (1890-1935) morreu em um acidente aéreo na Colômbia. Em comum, segundo historiadores, Maradona, Gardel, Evita Perón (1919-1952) e o ex-presidente Juan Domingo Perón são e foram símbolos da Argentina e “fenômenos de massa”.

“E o funeral de Maradona será também um fenômeno de massas por tudo o que ele representa para os argentinos”, disse o escritor e sociólogo Pablo Alabarces. “Não temos grandes heróis nacionais e por isso os mitos são importantes”, disse o analista Marcos Novarro, professor da Universidade de Buenos Aires.

Mas por que os analistas fazem paralelo entre a trajetória do país e a do craque?

Novarro faz um paralelo com a “personalidade apaixonada, talentosa e, ao mesmo tempo, autodestrutiva” do ex-jogador, que se parece com a da Argentina. “Ao mesmo tempo em que nosso país tem grandes talentos, adota atitudes irresponsáveis. Maradona era genial, mas tinha certa inocência. E, como muitos argentinos, admirava a irreverência”, disse Novarro.

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As homenagens a Maradona se repetem em várias partes da Argentina

A analista política Graciela Romer disse que a Argentina, como Maradona, toma atitudes imprevisíveis ou que podem ser questionadas “em termos éticos e republicanos”. Foi o caso, recordou, do chamado “gol da mão de Deus”, na Copa do Mundo do México. “Ganhou a partida, mas não pelas regras do jogo. Para mim, ele tinha um perfil populista ao mostrar sua preocupação com os pobres, mas sem atender às regras republicanas”, disse.

Mas qual seria um exemplo de falta de cumprimento da Argentina das “regras republicanas”?

“A Argentina vive interpretando a constituição de formas diferentes. E mudando as regras, como anárquica”. Para Romer, a aproximação de Maradona a políticos como os ex-presidentes Fidel Castro, de Cuba, e Hugo Chávez, da Venezuela, também mostram um perfil de setores do país. “Maradona era um personagem complexo, como é a Argentina. E com valores democráticos questionáveis como ao de se sentir fascinados por líderes latinos que são controversos, como Fidel, Chávez e Maduro. Era muito talentoso, mas imprevisível, como também é a Argentina”, disse Romer.

Um ex-diplomata argentino lembrou que a “irreverência” de Maradona podia ser associada à Argentina quando o país declarou o maior calote da dívida da história do capitalismo, na crise de 2001.

“Eu lamento que ele nos represente. Não pelo bom jogador que foi, mas porque ele poderia ter sido um símbolo para os jovens e não foi. Era apaixonado demais e sua paixão desenfreada incluiu sua dependência química e uma vida de altos e baixos. Infelizmente, nosso país também tem uma trajetória de altos e baixos, de crises profundas e seguidas”, disse. Para ele, o país que tem três Prêmios Nobel e dois prêmios Oscar poderia ser lembrado “por outros motivos e personagens”.

Maradona representa pelo menos uma parte da sociedade argentina, na visão do analista argentino Ricardo Rouvier, da consultoria Rouvier y Asociados.

“Se Maradona não tivesse nascido na Argentina teria nascido em Nápoles, no sul da Itália, onde a paixão é uma das características. Maradona é identificado pela preocupação com os pobres e por isso os mais humildes agora choram sua morte. Para os mais humildes, ele é um herói, um herói nacional”, disse Rouvier. Os primeiros imigrantes argentinos foram europeus e especialmente italianos e é frequente a associação entre argentinos (especialmente os portenhos de Buenos Aires) e a Itália.

Para o analista, os mais educados e cultos do próprio país não se identificam com o ex-jogador do Boca Juniors e do Argentinos Juniors. “Estes o admiram por sua magia nos campos, mas não por sua vida fora dos campos. Não por sua rebeldia explicita”, disse Rouvier.

Em sua última entrevista, ao jornal Clarín, de Buenos Aires, no mês de outubro passado, quando completou 60 anos, Maradona disse que lamentava ter sido dependente químico e que não fosse por isso teria jogado mais tempo. Com problemas de saúde, Maradona se despediu dos campos há quase vinte anos, como recordou o jornal Olé, de Buenos Aires. Mas para a analista Analía del Franco, Maradona era “único” e por isso mesmo, disse, não representava o comportamento da sociedade argentina como um todo. “Ele era único em tudo o que fazia. Não haverá igual. E não acho que todos aqui somos como ele, de forma alguma”, disse.

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Fonte: BBC