Memórias gustativas de uma viajante apaixonada por comida

Filho, hoje quero falar de comida! Mais especificamente as de viagem.

Você me conhece e já deve desconfiar que não vou falar de alta gastronomia. Nada contra, mas meu barato é a comida, digamos, casual. Aquela sem muita elaboração, quase acidental, às vezes boa, às vezes uma lembrança ruim. Tudo na vida tem ônus e bônus.

Eu divido as comidas casuais de viagem em três categorias: as de estrada, as de rua e as de lugares aleatórios como aeroportos, rodoviárias e lugarzinhos que aparecem do nada – tenho um carinho especial por botecos encardidos, não sei o motivo. Uma dica de ouro: arrisque-se. Aqui vou te contar algumas experiências inesquecíveis.

Seria um pecado não começar pela coxinha, uma representante da mais fina flor da baixa gastronomia brasileira. Essa iguaria pode ser encontrada em todo território nacional, mas costuma variar e muito nos quesitos massa, tempero e apresentação. Deve ser comida sem frescura, em qualquer lugar, sem exceção. Não tenha preconceitos com botecos onde elas podem ser observadas em vitrines engorduradas acompanhadas do ovo rosa e outros acepipes do fast-food raiz brasileiro. Passar batido pode significar perder a coxinha da tua vida. Sei que há controvérsias, mas pra mim coxinha se começa devorando pela parte mais pontudinha, nunca ao contrário.

Vou começar em alto estilo, pela que considero a melhor coxinha de São Paulo, na minha nada humilde opinião de coxinhólatra. Ela mora numa padaria escondidinha perto do aeroporto de Congonhas, um achado. A melhor que comi, sem fama, sem mesa de palete, sem avocado nem bowl no cardápio, sem glamour ou grife. O lugar chama Paninoteca, uma fachada que parece ter saído de um álbum de família dos anos 1930. Entre por aquela portinha na Rua Galileu número 101 e seja feliz.

Coxinha da Paninoteca, em São Paulo
A mais perfeita tradução de uma coxinha eu só encontrei na Paninoteca, em São Paulo (Ana Claudia Crispim/Arquivo pessoal)

As coxinhas que saem dali são roliças, douradas, com tamanho perfeito (nem pequena, nem grande) e vêm com aquela película granulada saborosa antes de chegar na casquinha propriamente dita, que é fina e crocante. Passando esse primeiro obstáculo, os dentes chegam em uma massa macia, levemente cremosa, o recheio de frango é bem desfiado molhado, cremoso, nada artificial e escorrega lentamente pela língua. No meu Michelin ela é três estrelas.

Antepondo essa experiência, lembro de uma coxinha suspeita (só não via quem não queria), uma aventura ácida que teve início na rodoviária de Salvador, um pouco antes de pegar um ônibus pra Mucugê, na Chapada Diamantina, e se estendeu pelas sete horas de viagem em que eu e ela travamos um diálogo de fogo. Ela era massuda, salgada, recheio amarelo, temperada com coentro (isso eu gosto). Foi uma experiência ácida e com retrogosto de cabo de guarda-chuva enferrujado, um horror. Me arrependo? Não muito. Eu honro minhas experiências, só deveria ter tomado sal de fruta em vez do Guaraná Fratelli Vita, um patrimônio soteropolitano. OK, acho que se pudesse voltar no tempo, teria comido um acarajé (este merece uma ode exclusivíssima). Mesmo banhado de óleo de dendê, acredito que o estrago seria menor.

Tenho um carinho especial pelo percurso São Paulo-Aracajú, que eu e teu pai fizemos algumas vezes pra ver tua bisavô, dona Emilinha. Ainda sinto o gosto dos jambos vermelhos vendidos em redinhas amarelas na beira da estrada, do queijo de pescoço, um meio termo entre provolone e mussarela, uma negócio peculiar. E tenho uma história curiosa, a melhor surpresa de estrada da vida toda! Foi assim: a gente estava varado de sede, nada de posto, boteco, barraca, um trecho sem fim de solidão estradeira. De repente aparece uma placa: água de coco gelada. Sei. Fomos incrédulos, mas com um micro fio de esperança de achar um coco quente pra quebrar o galho. O lugar estava deserto, quase fomos embora, se fosse hoje desconfiaria de sequestro. Apareceu um moço saindo do mato, pedimos o coco, ele falou pra esperar, sumiu no meio do mato novamente e voltou com dois saquinhos plásticos espetados com canudos. Isso mesmo, saquinhos! E quer saber? Estava es-tu-pi-da-men-te gelado e doce.

Essa lista não pode existir sem os toletes de cana-de-açúcar vendidos na estrada que leva até Mata de São João, não a dos resorts como o Costa do Sauípe e praias desbundantes, mas sim a do outro lado da rodovia, no interior quente e abafado, das cidades pequenas beirando a estrada. Os toletes são pedaços de cana de açúcar cortados na vertical com mais ou menos uns 10 centímetro de comprimento. Não tem jeito certo de comer, pode ser girando na horizontal ou, como eu prefiro, na vertical. O importante é saber apreciar a dentada na fibra crocante que faz creck e curtir os primeiros segundos que o caldo doce invade as papilas soltando aquele gosto refrescante de coisa verde, fresca, recém-colhida. Tem saber de infância, da época que teu avô cortava cana pra mim. Acho até que vou pedir pra ele!

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Corta e agora vamos dar um salto. Eu amo Berlim. Até a presente data é a cidade que me sinto mais à vontade no mundo. Embora o currywuerst seja a comida de rua mais famosa de Berlim e toda a Alemanha, eu gosto mesmo é do döner kebab vendido por turcos em praticamente qualquer lugar. É vendido em barracas despretensiosas ou em estabelecimentos famosos, alguns com filas imensas causadas por algum ranking em alguma publicação em guias de mochileiros. Não caia no encanto dos rankings! Aqui vale o clichê materno: você não é todo mundo. Se joga no poder da escolha, do risco e da descoberta, sempre vale a pena. O döner é uma refeição completa, um prato nacional turco, adaptado para o gosto alemão. É feito de carne assada de cordeiro, carneiro, boi, cabra ou frango, assados em um espeto vertical, fatiada e servida dentro do pão pita com saladas e molhos diversos. Escolha a opção com fritas, peça uma Fritz-Kola ou uma Berliner Weisse pra acompanhar e implore pra pegarem leve na pimenta, nunca vou esquecer da noite que assisti ao show de Natal da Helene Fischer na TV com minha boca pegando fogo em um quarto de hotel moderninho no Schonervitel.

Kebab
Um kebak em Berlim é tudo de bom, filho. Só reze pra pegarem leve na pimenta (Anima Visual/Unsplash)

Quero encerrar esta pequena viagem gastronômica com o cornetto, um folhado vendido em qualquer canto de Roma. O corneto está para a Itália como o croissant para a França e a medialuna para a Argentina – que nenhum italiano purista leia isso. É uma lindezinha, pequeno, esteticamente perfeito. O simples, sem nenhum recheio, já vale a pena, mas o matador é o recheado com Nutella, uma experiência de (muitas) calorias felizes. Pense numa massa fresquinha, delicada, pouco resistente, caracterizada pelo barulhinho da casca resistindo com muita má vontade à primeira dentada provocando uma nuvem de açúcar de confeiteiro pairando por segundos em frente ao nariz seguida pela tão esperada travessia da massa macia e amanteigada. Logo aparece aquele espaço de ar tão característicos da massa em camadas, folhada por dentro e crocante por fora. Em segundos a boca toca o creme de avelã que, sem prática, pode fugir para os cantinhos da boca. Ao mesmo tempo surge um rastro de migalhas e açúcar espalhados pela roupa. Precisa de prática para acertar a mordida sem muita sujeira e todo mundo sabe que a prática leva à perfeição. Sugiro fazer treinos em outras versões: massa integral com mel, recheio de geleias de frutas, chocolate amargo, creme… Comer cornetto é experiência orgástica, quase espiritual, acredite.

Eu poderia escrever por horas sobre experiências gastronômicas boas e ruins de viagens. O churrasquinho de gato brasileiro, caracóis na Praça Jemaa El-Fna em Marrakesh, churrasco texano nos Estados Unidos, pizzas ao taglio e porchetta na Itália, churros espanhóis, milhos peruanos, baguetes pra comer purinhas andando por Paris

Vou parar por aqui. Bom apetite, filho. Te amo.

[Leia mais sobre viagens y otras cositas da vida de uma mãe 360º no meu Instagram @rivotrip.oficial]

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Fonte: Viagem e Turismo