Eu não estava muito interessado em estudar.
A escola era para mim, naqueles dias do início dos anos setenta, uma oportunidade de socialização e lazer.
Jogava bola com os meninos, apaixonava-me platonicamente pelas professoras e o dever de casa ficava para depois.
O sistema de ensino do Brasil daquele período consistia em quatro anos do curso primário, admissão, quatro anos de ginasial e três de colegial – ou científico -, que é como alguns chamavam o segundo grau. Depois viriam o vestibular e a universidade.
Após termos cumprido o curso primário, passávamos por uma espécie de purgatório, batizado de Admissão.
Terá existido nesta vida, algo mais inútil que a admissão?
A admissão era o dente do siso do ensino brasileiro. Não servia para nada e ainda doía de vez em quando.
Felizmente, o ministério da Educação acabou com a Admissão dois anos antes de eu começar a cursar o ginasial. Ainda bem. Mas dei com a cara na parede tão logo me matricularam no Ginásio Duque de Caxias. Não gostei do que vi, nem ouvi.
Português, matemática, educação moral e cívica, educação física, educação artística, geografia e história: o curso ginasial se resumia a estas matérias. Ainda assim fui um aluno medíocre.
Naquilo que me dizia respeito, a matemática era complicada e a língua portuguesa ora seduzia, ora amaldiçoava.
A professora de história era uma pessoa triste que semeava nuvens e sombras. Ministrava aulas sinistras, sombrias, com o cheiro mofado das bibliotecas. E muito da dor que rescendia de um casamento infeliz.
Não demorou muito para eu entender que Educação Moral e Cívica era uma imoralidade. Vivíamos uma ditadura militar e nos obrigavam, crianças quase inocentes, a entrar em fila e cantar o hino nacional.
Éramos patéticos meninos (e meninas) calçando congas fedorentos, cabelos cortados rente ao couro, enfiados em uniforme azul marinho.
Quando chegava o dia 7 de setembro, desfilávamos de calças curtas para homens grisalhos, o ombro cravejado de estrelas.
Rufavam bumbos, surdos, taróis e pratos. Batíamos o pé, seguíamos em passo de ganso, rumo a lugar nenhum.
Bandas marciais ventavam marchinhas ufanistas e outros absurdos pseudo-patriotas.
Não sabíamos da barra pesada daqueles tempos.
Nada sabíamos.
Afinal, aquele era um país que ‘ia para a frente’.
Tempos milagrosos em que Deus, cidadão brasileiro, operava milagres verde-amarelos.
Tempos em que o presidente da república mandava até na escalação da seleção de futebol.
Tempos de Dario Peito de Aço e do AI-5.
Tempos de Sérgio Paranhos Fleury e de vidas desperdiçadas nos porões da ditadura.
De bom nos meus quatro anos de ginásio, restaram as aulas de geografia e a atenção de Cely Domingues de Carvalho, a segunda numa linhagem de professoras que ainda hoje educa e ajuda a preparar para o futuro as crianças de Governador Valadares.
Foi com tia Cely que aprendi onde ficam Istanbul, Zagreb e Nairobi, três esquisitices minhas. Em suas aulas, o imaginário florescia à medida que eu ia tomando gosto pela matéria.
Ela nos emprestava asas e eu poderia amanhecer tomando um chá em Londres, ou terminar o dia sob as luzes deslumbrantes de Paris.
Com ela, fui para lá de de Marrakesh.
Aprendi que a Holanda é repleta de diques e que gôndolas românticas cruzam os canais de Veneza.
Graças à tia Cely eu poderia comer, em Zurique, um pedaço de autêntico queijo suíço, todo furadinho, como uma fotografia da lua.
E tive a certeza de que a seleção de João Saldanha jogaria a final da Copa do mundo no Estádio Azteca, na cidade que tinha o mesmo nome do país da qual era a capital.
Aprendi ainda onde ficava a Transilvânia – terra do conde Drácula – e que na friorenta Escócia ficava o lago Ness, que abrigava um monstro jamais capturado.
Esta semana, tanto tempo depois, fiquei sabendo que tia Cely viajou para um lugar de onde jamais havia falado em suas aulas.
O Céu – que é para onde vão aqueles que semeiam o bem -, ainda não consta do mapa-múndi.
Fonte: Brazilian Voice