mona Trem de doidoEmbarquei na estação de Waterloo, em Londres, com destino a Paris. O trem faz 300 km por hora e em menos de duas horas chegaria ao destino. Não deu sequer para apreciar a paisagem.

Primeiro, porque o Eurotúnel tem 50,5 quilômetros de extensão. Do lado de fora, somente a imposição do breu.

O moderno túnel construído sob o Canal da Mancha liga Folkestone, Kent, no Reino Unido, com Coquelles, em Pas-de-Calais, perto de Calais, no norte da França, é um prato cheio para claustrofóbicos como eu.

A ilusão de que apreciaria a bela paisagem rural da região se diluiu no primeiro rebanho de ovelhas pastando sobre um imenso tapete verde.

Vapt-vupt.

Desisti, fechei os olhos e comecei a imaginar que estava nos comboios da Vitória-Minas, no trajeto Governador Valadares-Vitória.

Os trens de ferro – que é como chamávamos as locomotivas – povoaram a minha infância como um dos grandes mistérios que não consegui desvendar.

Eu me postava, menino ancorado a uma distância segura ao lado dos trilhos, e me punha a contar os vagões carregados de minério em direção ao porto de Tubarão.

Minas Gerais haveria de virar uma grande cratera, pensava com meus botões.

De onde saía tanto minério de ferro, meu Deus?

Para onde iria tanta riqueza?

Tudo em vão.

Felizmente, aqueles trilhos tinham outros pertencimentos.

Sobre eles deslizavam também os comboios de passageiros, levando almas protegidas por impenetráveis vidraças e anseios de maresias.

Uma vez por ano a nossa família também ia ver o mar, numa viagem que me marcaria para sempre.

Na ida para Vitória, quem viajava à esquerda namorava o rio.

Os passageiros da direita vislumbravam a paisagem rural, com seus vilarejos de casebres humildes e mangueiras apinhadas de pepitas douradas.

No trajeto da volta, invertia-se o sentido do olhar.

A passagem do trem por aqueles lugares era um acontecimento religiosamente celebrado. A locomotiva apitava ao longe, anunciando sua chegada.

Os moradores corriam para suas janelas e ficavam acenando, dando adeus aos que passavam rapidamente por ali.

Eu olhava para aqueles acenos e tentava adivinhar seus donos.

Que destinos estariam marcados nas palmas de suas mãos?

Durante as breves paradas, meninos vendiam picolés, doces, sanduíches de mortadela, salgadinhos e frutas.

A transação se completava rapidamente, da janela do trem.

Viajantes experientes levavam o dinheiro trocado para facilitar o negócio. Neófitos sempre esqueciam.

Às vezes nem dava tempo para completar o ritual e o pagamento da guloseima era arremessado em direção aos pequenos empreendedores, que faziam malabarismos para recolher moedas e cédulas espalhadas pelo chão.

Passageiros mais  afortunados tinham outra opção, já que dentro do trem havia um vagão restaurante, que servia também para dividir a primeira da segunda classe.

Não cheguei a viajar na parte destinada aos mais abastados e um dos meus sonhos de infância era me sentar naquele vagão-restaurante e pedir um filé com batata e petit-pois, anunciado em giz branco numa lousa escura bem em cima do balcão.

Petit-pois, que eu só viria a descobrir, já adulto, se tratava da mesma ervilha em conserva que minha mãe espalhava sobre o arroz de forno dos almoços de domingo em nossa casa.

Os bancos da segunda classe eram de madeira, duros como os das igrejas. Minha mãe levava um travesseiro para cada um de nós.

A viagem demorava 7 horas e uma das grandes preocupações era a ocupação do tempo.

Pessoas humildes faziam suas merendas para o longo trajeto.

Latas de leite em pó eram reutilizadas para levar frango frito, farofa e pastéis de carne moída, que murchavam antes da primeira metade do caminho.

Havia sempre uma garrafa térmica cheia de café com leite.

Os passageiros daquela metade do trem eram pessoas humildes que ganhavam ar de nobreza embarcando em direção ao litoral capixaba.

Eu carregava comigo um olhar atento:

Reparava na velhinha que faz tricô, na moça bonita que folheia a revista de fotonovela, no bebê que chora no colo da mãe até ser amamentado na frente do mundo.

Vejo o cobrador que passa verificando os bilhetes, a esposa que encosta a cabeça no ombro do esposo, a mala mal acondicionada no bagageiro que – sempre – cai na cabeça de alguém, a poeira negra do minério que ficou pululando pelas margens da linha e entrou – sabe-se lá por onde – e grudou nos rostos suados dos passageiros, irmanando-nos. Chegaremos morenos à estação de Pedro Nolasco.

O som estridente das rodas de ferro deslizando nos trilhos é música, o serpentear dos vagões nas curvas, agradável visão.

Reparo na sonolência do passageiro que esconde o rosto com o chapéu.

No jovem que faz palavras cruzadas e na menininha que puxa conversa com outra menininha e é repreendida pela mãe.

Noto o homem de feições duras e seu olhar vazio de sonhos atravessando a vidraça e se perdendo nas barrentas águas do rio.

Agora já não sou aquele menino e o trem da saudade tratou de libertar cada fantasma pelo caminho.

Uma voz feminina vaza do alto-falante anunciando, em francês, o fim da viagem.

Abro os olhos e já estou em Paris.

A máquina vai parando lentamente.

As lembranças de infância se dissolvem no burburinho da tarde.

As portas automáticas se abrem para que desembarquemos.

Recolho os pertences, estico a coluna para me aprumar e vislumbro o corre-corre das pessoas sobre o pavimento de concreto da estação Gare du Nord.

Dentro do vagão ficaram três horas de minha vida e algumas lembranças de um tempo feliz.

A milhares de milhas dali, eu sei que as águas do Atlântico lambem as areias da Praia da Costa e não molharão meus pés.

No museu do Louvre o sorriso enigmático da Mona Lisa espera por mim.

Fonte: Brazilian Voice