A música do acaso

Não estava no roteiro. Ou estava. Só que de passagem. Do lado de fora, merecendo não mais que um passar de olhos. Mas, aí, eu vi aqueles estranhos vitrais.

Ainda em Zurique, na minha viagem recente à Suíça, a primeira desde janeiro de 2020, eu estava mais que entusiasmado com a visita guiada ao centro histórico. Afinal, eu iria visitar o Cabaret Voltaire, o berço do dadaísmo, um lugar de peregrinação para quem, como eu, é apaixonado pela arte do século 20.

Pedi especialmente à minha guia, Luci, que incluísse essa parada no seu já completo itinerário, recheado de igrejas simples, porém adoráveis, e que fazem parte da história da cidade. Como a Fraumünster, com seus vitrais de Marc Chagall.

A Grossmünster estava no roteiro e, no seu exterior, parecia não pedir uma atenção maior. Até que eu vi os tais vitrais.

Vistos do exterior da construção, nem emitiam todo seu esplendor. Mas aquelas formas inesperadas de um enorme mosaico de ágata me fizeram lembrar que já havia lido alguma coisa sobre eles. Sim! Eles eram de Sigmar Polke.

Polke é, claro, um dos artistas contemporâneos europeus mais venerados dos últimos tempos. Já persegui retrospectivas dele pelos museus do mundo e foi fácil associar aqueles vitrais ao meu arquivo de referências dele.

Feita a conexão, implorei à Luci para sairmos do planejado, entrar lá e vê-los em todos seu esplendor.

Poderia gastar o resto do meu espaço aqui descrevendo o que vi, mas não encontraria palavras agora para me ajudar a descrever a experiência que vivi na Grossmünster. Absolutamente transformadora.

Faço melhor uso desta coluna, no entanto, para chamar sua atenção para o valor do acaso nas viagens. Se não fosse por ele, eu talvez não tivesse tido essa epifania em Zurique.

Com as fronteiras se abrindo, ainda que timidamente, novas perspectivas de viagem retornam ao nosso imaginário. As passagens aéreas ainda estão (muito) caras, e o valor do dólar cresce proporcionalmente ao volume de mentiras que conta aquele que chegou ao poder com a promessa de baixá-lo.

Mesmo assim, insisto, já podemos sonhar com outros horizontes novamente. E, ao fazer seus futuros roteiros, eu suplico: não deixe de planejar; mas deixe espaço para o acaso.

Foi ele que, numa caminhada em Rishkesh, Índia, me fez ouvir umas mulheres cantando num pequeno templo e seguir até elas, hipnotizado por uma tarde inteira às margens do Ganges.

Foi, ainda, o acaso que me fez descobrir uma casa de mais de 200 anos em Talat Noi, no bairro chinês de Bangkok, refúgio para o caos da minha cidade favorita no sudeste asiático. Ou um fadista aos prantos num pequeno cabaré no Porto, Portugal.

Esbarrei sem querer nos artistas mais incríveis de Bali no meio da estrada, a caminho do Pura Tirta Empul, o templo das águas da ilha indonésia. E no Beaubourg de Paris, pegando carona numa visita guiada, desvendei os segredos do “Quadrado Preto”, de Malévitch.

O acaso me trouxe amigos em Istambul, ateliês de artistas em Salvador, uma madraça no meio do nada no Mali, uma carne seca dos deuses em Luang Prabang, um fantoche de couro em Mumbai.

Também ele me fez comprar uma placa de metal com uma estrela de Davi em Wolleka, Etiópia, e uma tampa de freezer do mercado Roque Santeiro, em Luanda, Angola onde se lê: “Salão de Confiança, Entra Feio Sai Bonito”.

O mundo que visitei até hoje (e pretendo seguir visitando!) seria bem diferente se eu não tivesse me entregado ao acaso. E essa é a única música que quero dançar quando puser os pés de novo em um destino que eu ainda não explorei.

Fonte: Folha de S.Paulo

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