Brás, Liberdade e Bom Retiro

Todo estudante de São Paulo, em algum ponto da vida escolar, topa com “Brás, Bexiga e Barra Funda” –uma coleção de crônicas sobre a vida dos imigrantes italianos, lançada em 1927 por Antônio de Alcântara Machado.

É um livro que o autor insiste em dizer que não é um livro, mas um jornal. Iconoclastia e idiossincrasia típicas dos modernistas paulistanos, um tanto tontas para nossos dias, mas tá valendo.

De qualquer modo, Alcântara Machado era um Voltaire de Souza de cem anos atrás. Com frases curtas e diálogos meio cinematográficos, descreve o cotidiano daqueles estrangeiros que transformavam profundamente a cidade de São Paulo, em especial nos três bairros operários que dão título à obra.

A São Paulo dos anos 20 do século 20 ainda mora entranhada na maçaroca que é a cidade dos anos 20 do século 21. Eu arrisco afirmar que a nossa essepê, apesar de mais escassa em esperança, é mais interessante do que a Pauliceia da semana modernista. É outro 22, e haverá muitos outros.

No começo do século passado, São Paulo apenas engatinhava na diversidade cultural –e, por tabela, gastronômica. Tínhamos muitos italianos, alguns outros europeus e um grande contingente de japoneses, que ainda causavam estranheza e reações da mais escandalosa xenofobia.

O que temos agora é um painel de culturas e comidas imensamente mais variado –de estrangeiros e dos migrantes domésticos que vieram no decorrer de todos esses anos.

Legal é que o miolo dessa diversidade cultural e gastronômica continua nas áreas ao redor do centro da cidade. Os bairros mais bacanas para mergulhar nesse caleidoscópio paulistano são Brás (de novo), Bom Retiro e Liberdade.

Sim, eu escrevi “mergulhar nesse caleidoscópio paulistano”. Aceite.

O Brás, velho reduto de italianos, se expande para o Pari e o Canindé com sírios, palestinos, chineses e, principalmente, bolivianos. A feira da praça Kantuta, com espetinhos de coração de boi e saltenhas flamejantes, é o melhor programa pouco óbvio para quem não se importa com ar-condicionado.

O Bom Retiro, que já foi italiano e judeu, hoje é predominantemente coreano. A comunidade, antes bem fechada, está o que há de mais moderno e pop. No Bonra, você come churrasco coreano feito com um braseiro no meio da mesa. Sai andando na rua com o tal de corn dog, um picolé de salsicha. Vai a um bar de jovens engomados que ouvem K-Pop –e lá pode pedir, sem causar espanto, uma sopa de larvas de bicho-da-seda.

O Bom Retiro também é muito chinês e paraguaio. Segue sendo judaico e grego –lá ainda existe o lendário Acrópoles, onde o freguês escolhe a comida na cozinha.

A Liberdade, bairro mais central de todos, colado no traseiro da catedral da Sé, é uma arapuca turística que não para de surpreender.

Toda visita à Liberdade tem um lugar novo, uma portinha suspeita pedindo para ser explorada. Tem chineses de todos os cantos (inclusive do Cantão) e japoneses que não vendem sushi: vendem lámen, udon, tempurá, comida de Okinawa, comida de Hokkaido.

Tem restaurante filipino, restaurante afegão, restaurante indiano, tailandês. Se você desce a rua dos Estudantes até o Glicério, topa com portinhas que vendem comida haitiana.

São Paulo não é a capital mundial da gastronomia, como sonha ser. Mas é um lugar em que a mistureba –não vou escrever “caldeirão de culturas”… acho que escrevi– meio que compensa a feiura. Acho.

Odeio amar esta cidade. E vice-versa. Quem vive nesta delícia de inferno sabe bem do que estou falando.

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Fonte: Folha de S.Paulo

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