Conheça a técnica que tem impulsionado a produção de vinhos no interior de SP

O tour na Vinícola Biagi, em Cravinhos —a 293 km de São Paulo— começa com um passeio pelo vinhedo e apresentação sobre a poda e a colheita das uvas italianas cultivadas desde 2020 no local.

A poda, algo que parece banal para quem não sabe o que ela significa na produção de vinhos, porém, é o principal segredo para uma fazenda localizada numa região quente como a de Ribeirão Preto produzir uvas de qualidade. É, também, responsável pelo forte crescimento no total de vinícolas no interior paulista. Tanto que produtores estão desenvolvendo o selo Wines of São Paulo para destacar os chamados vinhos de inverno produzidos no estado.

Já são ao menos oito as vinícolas produzindo e outras 25 em desenvolvimento somente no interior de São Paulo, graças à chamada dupla poda, também conhecida como poda invertida ou de inverno. Três delas, a de Cravinhos incluída, produzem vinhos a partir de uvas italianas, num mercado hoje dominado por variedades francesas.

A produção em uma das vinícolas já atinge 70 mil garrafas por safra, graças à técnica desenvolvida na Epamig (empresa de pesquisa mineira) que consiste em transferir a colheita do verão, como ocorria até então, para o inverno, com o objetivo de “enganar” a planta.

Essa transferência, aliada à amplitude térmica (diferença, em graus, entre a temperatura mínima de um dia e a máxima) e ao manejo, proporcionou o surgimento de vinícolas como a Biagi, do empresário Luiz Biagi, articulador do movimento.

“A história do vinho no Brasil vai mudar. Nenhum brasileiro hoje entra numa loja de vinhos procurando vinhos brasileiros, a não ser espumante, em que o país tem uma qualificação extraordinária. Mas o sistema de dupla poda trouxe a possibilidade de produzir uvas com muito mais qualidade”, diz.

É um setor que cresce de forma tão acelerada –Biagi produz em 12 hectares e quer chegar a 20– que, conforme dados da Anprovin (Associação Nacional de Produtores de Vinho de Inverno), criada em 2016, já são produzidos 488 mil litros de vinho por ano, que resultam em 651 mil garrafas. Para conseguir vaga para visitar Cravinhos, é preciso reservar com boa antecedência.

A produção, segundo a Anprovin, está concentrada em 318 hectares (área equivalente a 445 campos de futebol) e reúne marcas premiadas como Maria Maria, de Boa Esperança (MG) –que desde 2009 cultiva videiras que hoje passam de 20 hectares, com foco na dupla poda– e Casa Verrone, de Itobi (SP). Entre as associadas há ainda vinícolas do Distrito Federal, Bahia, Goiás e Mato Grosso.

A técnica da dupla poda é utilizada também por outras vinícolas paulistas, como a Góes, em São Roque, que recebe em média 500 mil visitantes por ano. A empresa, que produz 12 milhões de litros de vinho anuais, informou que começou a gerar bons resultados na colheita de inverno em 2011, na primeira safra utilizando a técnica da dupla poda.

Com a colheita no inverno –julho e agosto–, o período de maturação da uva ocorre em dias ensolarados, com noites frescas e solo seco. O cenário é apontado por pesquisadores como fundamental para a qualidade dos vinhos produzidos no interior.

Na centenária fazenda em Cravinhos, que deu nome à cidade, o roteiro inclui também harmonização e degustação de quatro tipos de vinhos, em um autêntico tour enogastronômico. As refeições servidas no local são assinadas pela chef Beatriz Nomellini com a maioria dos ingredientes oriundos da própria fazenda.

A osteria foi aberta ao público em fevereiro e tem agenda lotada. No início de junho, o secretário de Desenvolvimento Econômico de São Paulo, Jorge Lima, esteve no local e também em São Roque.

Na vinícola de Biagi, ele disse que a proposta é incentivar a produção dos vinhos de forma acoplada a um programa turístico no estado, que deverá ser lançado pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos).

Já em São Roque, citou que há 20 vinícolas paulistas premiadas internacionalmente e que há capacidade para montar um polo similar ao existente no Sul do país.

“O visitante percebe que a uva [de inverno] tem muito mais qualidade, é sadia, com teor de açúcar muito maior e, consequentemente, gera um vinho muito melhor”, diz Biagi.

Produtores apostam no enoturismo em fazendas centenárias

As uvas italianas cultivadas em Cravinhos, sangiovese e nebbiolo entre elas, são oriundas da vinícola Marchese di Ivrea, de Ituverava, que tem 16 anos e surgiu numa área que no passado já abrigou algodão, soja, milho, cana e café.

Dono da vinícola, o empresário Luis Roberto Lorenzato, ex-deputado italiano pelo partido Liga Norte, disse ter a pretensão de, ao lado de Biagi e outros vitivinicultores paulistas, cobrir uma região que vai de Campinas a Uberlândia, distantes cerca de 500 quilômetros.

“Temos vinhos de qualidade, premiados. Como o vinho nacional estava muito defasado em relação ao importado, a proposta é usar a indústria de São Paulo, a pujança, para refletir no mundo do vinho. São Paulo é o maior mercado consumidor do Brasil, e acredito muito que o orgulho paulista dará credenciais para isso”, disse.

Na Marchese di Ivrea, que abriga um casarão de 1889, a ideia de produzir uvas surgiu devido a uma festa junina. Lorenzato convidou amigos para um evento noturno , mas cancelou após a temperatura cair a 5ºC numa noite de junho. Transformou a festa noturna num almoço no dia seguinte, quando o termômetro já marcava 25ºC.

“Eram noites frias, dias quentes e zero chuva. Se na Itália há regiões em que a temperatura passa de 45ºC e produzem uvas, aqui também seria possível. A uva gosta de calor também —a história de que ela necessita de frio é um mito”, disse.

A visita guiada ao local com 12 hectares, que ocorre aos sábados e, em períodos especiais, em dois horários, atrai em média 70 mil pessoas por ano. Ela começa com explicações gerais numa área que já funcionou como haras e, em seguida, os turistas são levados ao campo, onde conhecem as técnicas usadas e recebem explicações sobre o terroir e o processo de colheita das uvas.

Em seguida, com o sommelier Jovaniel Oliveira, 35, descobrem como são os processos de esmagamento das uvas, fermentação, filtragem e envase dos vinhos.

“Uma primeira colheita acontece em janeiro, em pleno verão brasileiro, com muita chuva e muito sol. Essa uva é usada para vinhos brancos e espumantes. Depois, é feita uma poda drástica na videira, fica só a parte que chamamos de lira. Em fevereiro, ela entra em hibernação, num período em que ela tenta entender o que está acontecendo. Depois vem a floração, maturação e, em julho e agosto, a colheita”, disse o sommelier.

A hora mais aguardada nas duas vinícolas é a da degustação harmonizada. Em Ituverava, com queijos e embutidos, em que são feitos seis brindes, o último deles com o Arduino, destaque entre os vinhos produzidos no local.

Enquanto um tenor entoa clássicos italianos, os convidados também saboreiam bisteca à fiorentina e cordeiro. O roteiro custa R$ 198 por pessoa (bebidas à parte, exceto na degustação).

Em sua 14ª safra, Lorenzato disse que há no mercado espaço para todas as 25 vinícolas em desenvolvimento e que isso fará com que o brasileiro reduza a compra de vinhos argentinos e chilenos.

“Vai fortalecer o enoturismo e mostrar às pessoas o passo a passo para a produção de um vinho de excelência. Elas entenderão que a qualidade é diferente e valorizarão o produto local, sem precisar ir para Chile, Argentina ou mesmo o Sul do país.”

Fonte: Folha de S.Paulo

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