‘Cruzei o Atlântico com três testes de Covid-19’, diz jornalista espanhola

Sair do Brasil tornou-se uma prova de resistência. Quando o governo espanhol avisou que as fronteiras do país seriam fechadas para tentar deter o avanço da pandemia, tive de encarar uma escolha difícil. Sair enquanto dava ou ficar no Brasil, onde resido, e passar a quarentena longe da família.

Foi em vão esperar que meus pais me dissessem o que deveria fazer e acabou sobrando para mim a decisão. Em questão de dias o terror instalou-se e todos percebemos que o vírus seria incompassível com a Espanha.

Passado o susto, em junho, a curva descendente de contágio fez com que os espanhóis sonhassem com o fim do estado de emergência, e os residentes no exterior, como eu, com o verão no país natal.

Empolgada, comecei a procurar voos para chegar a tempo para o aniversário da minha mãe, no meio de julho.

Empurrada pelas propagandas que destacavam as medidas de segurança, comprei uma passagem pela Iberia. Mas, duas semanas depois, a sombra da incerteza começou a pairar sobre meus planos quando a União Europeia restringiu a entrada de pessoas vindas do Brasil.

Não deu outra, o aviso de cancelamento do voo não demorou a chegar, e com ele começou uma longa jornada para sair do país. Da Iberia fui para a British Airways, que, após alguns dias, também cancelou a passagem, sem explicações.

Então, tentei a sorte com a TAP, companhia mais exigente que as concorrentes, porque o governo português requer um teste RT-PCR de Covid-19 feito 72 horas antes do embarque. Considerando que a maioria dos laboratórios não entrega o resultado antes de três dias, era um risco” que eu estava disposta a assumir.

No fim, o resultado não saiu a tempo do embarque, mas não fez diferença, porque a TAP também cancelou a passagem. Oportunamente, a Iberia me propôs —e aceitei— sair do continente pelo Chile, indo com a Latam até Santiago.

Com o passar da semana, o painel de partidas diárias de Guarulhos ia minguando, porém, a Air France e a KLM pareciam resistir. A três dias do embarque, a Latam adiantou meu voo em 24 horas, logo precisaria pernoitar no aeroporto de Santiago. Aquilo me desanimou e decidi arriscar com a companhia francesa.

O problema era que faltavam só dois dias para o embarque, e as autoridades francesas recomendavam levar um exame recente (últimas 72h) de Covid-19. Na falta de um, fiz dois (teste rápido e sorológico de anticorpos).

No dia, peguei a estrada em direção ao aeroporto e à medida que a setinha do Google Maps ia se aproximando do destino, sentia uma estranha ansiedade. Não era o familiar nervosismo de quem vai reencontrar a família, era uma sensação de estar fora da lei. Era como se eu estivesse fazendo algo reprovável pela sociedade e, sobretudo, por mim —nos últimos meses não poupei críticas a quem furou o confinamento sem necessidade.

Tudo ficou mais esquisito quando entrei no aeroporto. Aquele hall, que costuma ferver em qualquer época do ano, estava vazio. Procurei o painel dos voos: só três sobreviventes na tela. “Ufa, o meu continua aí”, pensei. Mas não sei por quanto tempo, porque só com umas dúzias de passageiros deve ser o transoceânico menos rentável que já peguei.

Cruzei o Atlântico com três testes de Covid-19 debaixo do braço, duas cartas atestando a minha boa saúde e o desejo de não ser barrada, isolada ou repreendida por um guarda francês na chegada a Paris.

Ainda assim, me sinto sortuda por passar este “perrengue chique”, ter a chance de ver a minha família (sem abraços até daqui a uns 14 dias) e ter perdido, durante a pandemia, apenas milhas de companhias aéreas nas tentativas.

No fim, consegui chegar para o aniversário da minha mãe sem ter nem sequer um termômetro apontado para a minha testa em todo o percurso. Sob a ameaça de uma segunda onda da pandemia na Europa, o próximo desafio será a operação retorno.

Fonte: Folha de S.Paulo