De volta à capital mundial dos espetinhos

Acordei cedo no domingo. Dormi muito mal, na minha cama de adolescente na casa da minha mãe –com um colchão escangalhado que eu não sei de onde apareceu.

Queria caminhar no parque, mas o parque –da Aclimação, aqui ao lado– estava fechado. Por causa da pandemia, não abre aos fins-de-semana. Precisava arejar as ideias, então fui andar pelo bairro.

Comer um pastel na feira, quem sabe. Meus pais voltavam todo domingo da feira, carregados de pastéis, antes de eu acordar.

Fui pelo caminho mais longo.

Ainda na minha rua, passei em frente à casa do Cézar Augusto, que foi meu melhor amigo quando eu tinha 7 ou 8 anos. Ele foi embora do bairro ainda na nossa infância. Passei rente ao portão de uma casa que tinha um pastor alemão full pistola: o bicho latia sempre, e sempre eu tomava um susto do cão. Nenhum sinal de cachorro, nem de gente, só um anão de jardim criando musgo e algumas placas de “vende-se”.

Passei junto à casa do Fabinho, amigo meu e do Cézar, que fazia cerol para a linha “do” pipa com lâmpadas trituradas e cocô dos próprios cachorros (sim!!), e dobrei à esquerda, depois à direita, acompanhando o muro do cemitério.

Apesar de muito cedo, já estava aberta a loja de mármores e apetrechos funerários dos pais do meu amigo Marco Antônio, imigrantes portugueses. Lá dentro, um funcionário falava ao celular. A morte não respeita a folga dos vivos.

Um pouco adiante, o salão de cabeleireiro do Magrão, sujeito espirituoso. O lugar está lá, em frente ao cemitério, pelo menos desde os anos 1980. Chamava-se, de início, Haki Jazz; depois Magrão simplificou e tacou Aqui Jaz, sem tentativas frustradas de trocadilho, na placa.

Criança, eu achava bizarro aquilo. Adolescente, fiz questão de cortar o cabelo lá duas ou três vezes. Só para poder contar a façanha quando me tornasse colunista de jornal.

Na parede da igreja, fiz a ferradura e comecei a voltar pela rua de cima. Desculpe: avenida. A Lins de Vasconcelos, que vai do metrô Vila Mariana ao largo do Cambuci e é o principal corredor comercial da região.

Começava a ter mais gente na rua. Uma velhinha de máscara me deu “bom dia” como não é hábito em Perdizes e, ao perceber que passara para o terreno da arquidiocese, apressou-se em fazer o sinal da cruz.

Um pouco adiante, um conjunto de prédios toma o terreno onde, na minha infância, ficava o restaurante Batista.

Eu nem me lembro da comida servida no Batista, ela era a coisa menos importante do rolê. O bairro (que naquele pedaço se chama Jardim da Glória) ainda era cheio de terrenos enormes, alguns baldios, outros ocupados por chácaras. O Batista estava numa dessas chácaras e tinha um zoológico particular –ilegal, provavelmente.

Numa tarde, eu e os amigos de rua fomos encher o saco lá no Batista, que estava fechado entre o almoço e o jantar. Um dos moleques, não lembro quem, chegou perto demais da ariranha, que o agarrou e começou a roer sua canela. O caseiro viu o furdunço e apareceu para espantar o animal e escorraçar nós meninos. Ninguém saiu ferido.

(Na época, o Brasil ainda lembrava bem do caso de Sílvio Hollenbach, sargento do Exército morto em 1977, no zoológico de Brasília, por ariranhas. O militar pulara para dentro do espaço dos animais para resgatar –com sucesso– um menino de 13 anos.)

Eu ainda pensava na ariranha quando me aproximei do ponto de ônibus. Um maluco –drogado ou simplesmente maluco, mesmo– mexia freneticamente numa mochila e fez sinal para o coletivo. O motorista parou, algumas pessoas desceram, o sujeito subiu para descer de novo antes da partida do busão. Ele estava sem máscara. Assim que desceu, pousou os olhos nos meus. Contato visual feito por acidente, apertei o passo por prudência e leve cagaço.

Cheguei rapidão à feira, que ainda está no mesmo lugar, quase colada à ex-casa de um ex-amigo. Ex-amigo dói mais que ex-mulher, porque com ex-mulher você ainda pode manter algum grau de amizade. Ex-amigo significa rompimento absoluto. Mas vamos ao pastel.

Não comi o pastel. Já saí de casa sabendo que não teria a coragem de tirar a máscara na feira para comer um pastel. Sequer entrei na feira. O pastel foi só um pretexto para a caminhada nostálgica.

Voltar para a casa da mãe depois de 30 anos é uma experiência que não estava nos meus planos. Nesse tempo todo, visitei a família com frequência variável: todo dia, quando minha filha era pequena e ficava aos cuidados dos avós antes da escola; depois semanalmente, nos almoços de domingo. O pai morreu, e a mãe, com Alzheimer, nem sempre me reconhece. A casa não parece mais nossa, minha e das minhas irmãs. Dona Ana tem a companhia constante de cuidadores, coisa que sua pensão de professora aposentada pode pagar. Na pandemia, as visitas cessaram para preservar a saúde da velha.

Nesse tempo todo, eu via as mudanças no bairro, mas não as sentia –estava só de passagem. Agora voltei para uma temporada extensa.

A Aclimação e o Cambuci (moro numa área em disputa) não são mais a terra do pastel de feira do domingo, da coxinha do Yokoyama, do xis-salada da Chapa.

Aqui virou a capital mundial dos espetinhos, aqueles que costumávamos chamar de churrasquinho de gato. Olha, se é de gato, agora é siamês ou angorá: o bairro é repleto de botecos de espetos gourmet, premium e prime top. Em frente ao prédio da minha mãe tem um. Numa rua lá de baixo, perto do parque, tem meia dúzia de bares de espetos, um ao lado do outro. Sempre cheios de gente ruidosa, alegre e sem máscara.

Nunca vi tanto amor por espetinhos. A Aclimação merece ser estudada.

Eu estou me lixando para eles. São a coisa menos importante do rolê.

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Fonte: Folha de S.Paulo