Entenda a crise econômica e a inflação sem freio na Argentina

Alguns arriscam dizer que o clima de profunda euforia que parou a Argentina na comemoração da Copa do Mundo, em dezembro passado, foi mais do que um alívio pelo longo hiato sem levantar a taça, e sim uma catarse coletiva que permitiu enfim esquecer os problemas.

Afinal, os argentinos vivem sua terceira grande crise em 40 anos de democracia, e não por coincidência: questões mal resolvidas no passado ajudam a explicar o déficit insistente, a alta dívida externa, a moeda sem credibilidade e a falta de dólares que fazem a inflação explodir.

Abaixo, entenda por que o dinheiro derrete e a pobreza cresce na nação que já foi mais rica que Alemanha, Itália e França. Veja também por que o país, que segue sendo o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, atrás de China e Estados Unidos, ainda não colapsou estando a alguns meses da eleição presidencial.

Por que a inflação não para de crescer na Argentina?

A face mais palpável da crise argentina é a inflação, que passa dos três dígitos desde fevereiro e faz os preços subirem quase toda semana. Ela é causada principalmente pela abundância de pesos nas ruas: quanto mais oferta da moeda, menos ela vale, e isso fica visível nos bolos de notas que os argentinos e turistas precisam colocar no bolso todos os dias.

Mas por que há tanta moeda em circulação? O principal motivo apontado por economistas é que a Argentina acumula déficits fiscais há mais de dez anos, ou seja, gasta mais do que arrecada. Grande parte desses gastos corresponde a subsídios, como nas contas de luz, água e transportes, serviços muito baratos se comparados ao Brasil.

Para financiar suas despesas, o governo emite títulos públicos a serem vendidos no mercado financeiro (o que permite absorver novamente esses pesos, controlando a inflação). Mas, num país sem credibilidade, a medida se tornou insuficiente, e o presidente peronista Alberto Fernández passou simplesmente a imprimir pesos, a ponto de contratar casas da moeda no Brasil e na Espanha.

Nos últimos 20 anos, a circulação de dinheiro cresceu num ritmo muito mais acelerado que o PIB (Produto Interno Bruto), e o resultado é uma rápida desvalorização da moeda. Se há um ano US$ 1 comprava cerca de 200 pesos numa casa de câmbio clandestina, hoje compra quase 500.

Diz-se clandestina porque, em 2019, o governo voltou a impor um limite de dólares que podem ser comprados por cada argentino (hoje em US$ 200 por mês) e a segurar o câmbio oficial. O mercado do dólar paralelo, chamado de “blue”, então, cresceu. Na prática, é essa cotação que rege o dia a dia argentino.


Por que há vários tipos de dólares e sua compra é limitada?

A Argentina vive uma escassez histórica de dólares em seus cofres, principalmente pelas altas dívidas externas contraídas ao longo das suas diversas crises. O país tem hoje pouco mais de US$ 30 bilhões de reservas internacionais —para se ter ideia, o Brasil, por exemplo, tem mais de US$ 340 bilhões.

O que já era ruim ficou pior devido a diversos fatores recentes. Sem credibilidade para atrair investimentos estrangeiros, a nação depende muito das exportações agropecuárias para que a moeda estrangeira entre, mas uma seca considerada sem precedentes atingiu a última safra de soja, milho e trigo, derrubando a produção.

Além disso, os exportadores relutam em vender seus estoques porque o dólar oficial praticado nessas transações vale muito menos do que o paralelo, que determina os preços do seu cotidiano. Além disso, o governo impõe altos impostos sobre exportações para aumentar a arrecadação (o da soja, o produto mais importante para o país, é de 33%).

Para estimulá-los a vender e promover a entrada de dólares, o governo então tem criado cotações paralelas para cada setor, mais vantajosas do que a oficial. Já são mais de 15. Em março, por exemplo, surgiu um novo dólar agro, então em vez de receber 200 pesos a cada equivalente em dólar vendido, o produtor recebe 300. Há também os dólares Coldplay, para shows internacionais, e Netflix, para streamings.

Por que o país precisa de reserva de dólares?

Primeiro, porque a falta de dólares dificulta as importações. Para amenizar o problema, recentemente a Argentina fechou um acordo com a China, para fazer transações em yuans, e tem negociado com o Brasil, para criar linhas de crédito para apoiar empresas brasileiras que exportam ao vizinho.

Segundo, porque mais da metade das dívidas do país estão, justamente, em dólares. Essa dívida explodiu em 2018, quando, sem credibilidade para conseguir crédito estrangeiro, a gestão de Mauricio Macri fez o maior empréstimo da história do FMI (Fundo Monetário Internacional), que foi reformulado diversas vezes e totaliza US$ 45 bilhões.

Para honrar o pacto, a nação precisa bater uma série de metas que são checadas periodicamente, como reduzir os gastos, o déficit fiscal e a inflação, mas até agora não conseguiu cumprir muitas delas. Instalou-se, então, um cabo de guerra: de um lado, o governo quer que o fundo libere os recursos e estenda prazos de pagamento, de outro, o fundo pressiona o governo a equilibrar as contas.

Para complicar, isso tudo acontece num ambiente econômico altamente politizado, à beira de uma eleição presidencial em outubro. Até lá, não deve haver reformas de choque, apenas medidas paliativas (como, por exemplo, o congelamento de preços, que já chegou a causar falta de produtos nas gôndolas) para segurar as pontas até que o novo presidente assuma.

Se não pagar o FMI, o país pode dar adeus a qualquer financiamento internacional. Devido ao histórico de calotes, a Argentina já não consegue ser atrativa nem aumentando suas taxas de juros repetidamente. O peso perdeu credibilidade até internamente, por isso os argentinos economizam e pagam aluguel em dólares.


Qual é a relação da crise atual com as antigas?

A fraqueza do peso hoje é uma consequência das crises anteriores. Se a inflação atual acima de 100% é considerada altíssima, em 1989 ela ultrapassava os 3.000%, como efeito de altos endividamentos contraídos durante os governos ditatoriais no fim dos anos 1970 e início dos anos 1980.

Enquanto o Brasil, que vivia um cenário parecido, criou o real e buscou fortalecê-lo nos últimos 30 anos, a Argentina percorreu o caminho inverso, atrelando sua moeda ao dólar. Em 1991, a chamada lei da convertibilidade fixou a paridade entre elas, ou seja, 1 peso passou a valer US$ 1.

No início, o plano funcionou, fazendo a inflação cair e o PIB crescer. Mas a longo prazo, para mantê-lo, era preciso ter reservas da moeda americana que não se sustentaram. Com crises na região e na Ásia, os produtos argentinos encareceram e os investidores foram embora. A solução foi se endividar mais, levando a outro colapso em 2001.

Com uma nova forte desvalorização do peso, o governo decretou o congelamento das poupanças (o “corralito“) e limitou os saques nos bancos. Uma onda de protestos tomou as ruas por três meses, o presidente Fernando De la Rúa renunciou, e o governo deu um calote bilionário nos credores. Até hoje, os argentinos têm medo de guardar dinheiro no banco, e os investidores não confiam no país.

A principal consequência é sempre o aumento da pobreza, que hoje voltou a atingir quase 40% da população, sendo 8% indigentes. Para amenizar os impactos da crise a essas pessoas, o governo gasta mais em auxílios e aposentadorias, alimentando a roda giratória da inflação.


Por que a Argentina ainda não colapsou?

Principalmente porque os salários e aposentadorias, no geral, aumentam junto com a inflação, com reajustes trimestrais ou quando se julga necessário —os mais prejudicados são os trabalhadores informais, cada vez mais volumosos. O desemprego fechou em 6,5% em 2022, menor do que no pré-pandemia e contra 9,5% no Brasil.

Isso, somado ao fato de que ninguém quer ficar com seus pesos queimando nas mãos, faz o consumo e a economia girarem. O crescimento do turismo também ajuda, já que é cada vez mais barato para vizinhos como Brasil e Chile e para europeus e americanos viajar ao país.

Analistas citam ainda um fator comportamental. Os argentinos já acham normal conviver com os preços subindo há décadas, então não se desesperam. A estrutura de proteção social criada após a crise de 2001 e a forte vinculação do governo atual com sindicatos e movimentos sociais também contêm minimamente o caos social. Pelo menos até agora.

Fonte: Folha de S.Paulo