Escravidão é o prato do dia nos restaurantes mais descolados

O anúncio do fechamento do restaurante Noma, em Copenhague, trouxe à baila duas questões demasiado incômodas para o negócio da gastronomia.

Uma delas afeta tão-somente quem trabalha no setor ou frequenta estabelecimentos de alto luxo e culinária experimental: é um nicho sem viabilidade econômica. Nem o Noma, proclamado ad nauseam o melhor do mundo, tem uma operação sustentável.

A outra extrapola o mundinho da gastronomia e afeta, de maneiras nefastas, a sociedade em geral. Para seguir em sua caminhada manca, o Noma lançou mão das piores práticas trabalhistas.

Uma reportagem de 2022 do jornal inglês Financial Times afirma que, antes da pandemia, o restaurante dinamarquês explorava a mão-de-obra de 30 estagiários não-remunerados. Outros 34 cozinheiros recebiam por suas funções.

Eufemismos de fora, quase metade da equipe trabalhava em regime de escravidão.

Antes o Noma fosse exceção. A jornalista Imogen West-Knights percorreu a cena de restaurantes de Copenhague (com reputação de ser menos tirânica para cozinheiros do que Paris ou Nova York) e coletou relatos de horror.

A história mais bizarra diz respeito a um chef que punia seus estagiários com joelhadas no saco. Abusos de tal ordem são acobertados por um pacto de silêncio.

Cozinheiros temem represálias, empresários se fecham em cumplicidade, jornalistas de gastronomia também defendem o seu –o que lhes resta quando desmorona o glamour artificial de uma indústria cruel?

A rotina de abusos na cozinha é universal, universalmente sabida, aceita e lustrada com verniz de romantismo. Aí reside o aspecto mais insidioso da coisa.

A gastronomia funciona como um laboratório de aplicação do escravismo pós-moderno. Ele difere do escravismo clássico porque, enquanto o lombo aguenta, a vítima ostenta a servidão em selfies sorridentes.

Nos círculos superiores, jovens de elite aspirantes a chef engolem o açoite e o enxovalho para aprender com seus ídolos. Na cozinha profunda é outra conversa: o abuso contra peões não incorpora rapapés pós-medievais.

Não, não é todo restaurante. Não é toda confecção de alta costura. Mas há um padrão, não são exceções aberrantes.

A exposição digital e a recompensa em likes levam uma multidão a achar aceitável trabalhar em atividades bacanas (sim, a culinária é mais divertida do que o direito tributário) sem remuneração justa.

Esfrega aí essas panelas: um dia você será tão famoso quanto eu. Faz aí um post de Instagram em troca de cinco potes de maionese: isso vai te cacifar para voos futuros.

Os voos futuros, esqueceram de avisar, serão pagos em margarina. É um esquema de pirâmide. Só meia dúzia passam pelo funil. O resto será parasitado até pedir penico.

O chef americano Rob Anderson escreveu na revista The Atlantic, sobre a derrocada do Noma, um artigo intitulado “How Noma Made Fine Dining Far Worse”. Mal traduzido, “Como o Noma Piorou Demais a Alta Gastronomia”.

Discordo do chef. O Noma não é pior nem melhor do que trocentos restaurantes por aí (e ateliês e agências e coisa e tal). O que muda é o currículo dos escravizados.

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Fonte: Folha de S.Paulo

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