Festa do Nego Fugido (BA) encena liberdade e tomada do poder

Salvador, para além de ser a capital brasileira com o maior percentual de pessoas negras (cerca de 82%) é a que soube melhor guardar as heranças vindas do continente africano. O Recôncavo Baiano que fica nos seus arredores tem isso ainda mais vivo, com uma cultura raiz, em estado de África, com elementos brasileiros e da diáspora. A Festa do Nego Fugido que ocorre nos meses de julho em Acupe, distrito de Santo Amaro, é um bom exemplo disso.

Há mais de um século encenações invadem as ruas do distrito com um novo ato do drama do negro que fugia da escravização pelas matas e era perseguido pelo caçador camuflado com folhas de bananeira. O último domingo de julho (neste ano 30/7) tem o desfecho do teatro e é considerado o mais importante por ser quando o rei de Portugal é preso e é lida a carta de alforria. Tudo termina com samba de roda – na região em que o samba nasceu no Brasil.

Há ainda uma transposição para o teatro de rua, da linguagem musical do candomblé, acompanhada de tambor (atabaque), agogô e dança como o ijexá. O teatro desmente também a ideia de que o negro aceitou a escravização de forma passiva. Não à toa o recôncavo baiano tem diversos quilombos, onde pessoas negras viveram livres após fugirem da escravização.

No teatro, quem encena tem o rosto pintado de preto, com carvão moído diluído em óleo de cozinha, e sai pelas ruas num espetáculo que dura cerca de duas horas. As crianças estrebuchando no chão e a cena com a madrinha são as que mais me marcaram. Tem um quê de dor, de vingança, de beleza e de resistência.

A festa é regida pelas crianças, num processo educacional de relembrar a história e de desenvolver a autoestima e orgulho de serem pessoas negras. “Elas têm uma identificação e fascínio. A festa funciona como um ‘rito de passagem’, já que a maior parte das crianças de Acupe participam em algum momento”, afirma Monilson Mony, que é puxador das cantigas do Nego Fugido e doutor em Artes Cênicas.

Ele lembra que antes do período da abolição, as pessoas negras tinham a necessidade de ter um ritual chamado de “aparição”, que se transformou na encenação sobre a aquisição da liberdade, com discurso crítico que mostra o imperador preso.

A festa carrega também seus ritos e mistérios que são cultuados da porta pra dentro. É importante lembrar que o crescimento das igrejas neopentencostais tem significado uma resistência à manifestação cultural que hoje luta para continuar recontando a história pela ótica do povo preto.

“Temos um legado de luta do povo do recôncavo. É um discurso contrário ao do colonizador, que diz que quem libertou os escravizados foi a Princesa Isabel. Nossa narrativa não é que teve uma concessão e, sim, de que tudo foi por luta, além do fato de que a real liberdade só vai acontecer quando o povo tomar o poder”, explica Monilson.

O Nego Fugido retrata, portanto, uma espécie de saudosismo do futuro, algo que ainda está por vir. É uma manifestação que tem relação com a ancestralidade e precisa continuar porque a sonhada liberdade ainda não aconteceu.

Os primeiros registros desse tipo de manifestação são por volta de 1840 na região da Serra da Barriga (AL) e eram chamados de “dança do quilombo”, com ocorrência em toda a região Nordeste. Tanto que em Alagoas e Sergipe há o Lambe-Sujo, festividade popular que ocorre até hoje. No continente africano também há manifestações culturais usando folhas de bananeira ou que pintam o rosto de preto para a guerra, mas no Brasil a narrativa ganha as dores e lutas do povo preto com a escravização.

Na Bahia, o Nego Fugido tem atividades ao longo do ano e ganhou uma sede chamada de Museu Vivo do Saber e dos Fazeres do Recôncavo (Travessa Edval Barreto, S/N, Acupe). Por lá, são realizados reforço escolar ao longo do ano, além de jogos e brincadeiras, sem apoio dos governos ou das empresas.

“As pessoas vão para ver a parte do espetáculo, mas não é para ser visto como algo belo, queremos produzir consciência, provocar”, afirma Monilson Mony, lembrando que até a década de 1990 a festa não tinha público de fora por ser feita por um grupo considerado marginal e que percorria as periferias do pequeno distrito. “O público fica incomodado, mas os mais incomodados somos nós. Afinal, não é fácil contar essa história, reproduzir essa opressão”, considera.

A pintura facial de preto já ganhou críticas por ser comparada à técnica do black face, em que atores negros se pintavam de branco para interpretar personagens negros, e que foi “cancelada” por ser considerada racista. “Nós temos um contexto histórico diferente. Aqui é um ritual, está ligado ao período colonial, damos vida à matéria morta. Quem fala isso, não conhece a festa”, defende o puxador das cantigas do Nego Fugido.

Outra figura importante, Dona Santa, como era conhecida Edna Correia Bulcão, 80 anos, que organizou a festa durante cerca de 50 anos, faleceu no começo de 2023 deixando um vazio. Como os festejos não podem parar, seu legado tem sido levado à frente. A presença da mulher, aliás, está em todos os lugares e na figura da madrinha, que é representada na encenação e tem as cantigas dedicadas à ela.

Acupe, que significa Rio Quente, fica a 90 quilômetros de Salvador e abriga cerca de 10 mil habitantes. O distrito é banhado pela baía de todos os santos e envolto por manguezais. O local teve importantes engenhos, pertenceu a um dos governadores-gerais do Brasil (Mem de Sá) e hoje a pesca é uma das principais economias.

Todas as manifestações do povo preto que experencio tenho vontade de divulgar para que mais pessoas conheçam ao mesmo tempo em que cultivo medo da popularização e dos estragos que novos visitantes podem provocar. Então, fica um recado importante: vale a pena visitar, mas respeite: é uma festa das pessoas de Acupe para os acupenses. Somos os convidados e é preciso admirar e respeitar a cultura local.

Viva o Nego Fugido!

Fonte: Folha de S.Paulo

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