18h30, hora da “merienda”, o tradicional café da tarde em Buenos Aires. A brasileira Tatiana Rodrigues, 29, aproveita o wi-fi para trabalhar de uma das centenas de cafeterias da capital argentina quando entram dois meninos vendendo panos de prato. Ela não compra, mas dá um trocado às crianças, que agradecem, puxam a mercadoria de cima da mesa e saem pela porta apressadas.
O celular que estava ali? Sumiu. “Pensei ‘deve ser noia de brasileiro‘ e comecei a procurar o telefone na bolsa. Nisso já veio a garçonete e perguntou: levaram alguma coisa?”, relata a administradora, que ainda tentou, em vão, correr atrás dos garotos. Ali e na delegacia, o comentário foi o mesmo, alertando para o golpe cada vez mais comum nas áreas turísticas da capital —a mais segura da América Latina em termos de assassinatos.
Qualquer argentino já sabe que o aparelho deve ficar fora de vista em restaurantes e bares. “Meus amigos, meus chefes, sempre falam para eu colocar dentro da bolsa quando estamos jantando”, conta Tatiana, que mora no país há oito meses e teve um sentimento comum entre brasileiros roubados no exterior. “Me senti uma tonta. Não acredito que vim do Brasil para ser furtada desse jeito aqui”, diz ela, rindo.
Soledad Maldonado, 42, dona de um café nos limites do bairro de Palermo, afirma que esse tipo de delito se expandiu à medida que as áreas mais turísticas também se estenderam. “Aqui nessa região começou nos últimos anos. Antes se via mais em lugares tipo Palermo Soho, Recoleta”, comenta, acrescentando que já é rotina avisar aos estrangeiros para não relaxar demais, apesar do ar de cidade europeia.
“À la Brasil”, os portenhos também se acostumaram a evitar usar o celular na rua e a guardá-lo no bolso da frente em transportes públicos e multidões, conforme esse tipo de delito de menor porte foi crescendo junto com a piora da crise econômica. A inflação do país, que não para de subir e já ultrapassa os 115% anuais, faz o peso derreter e coloca uma parcela da população cada vez maior abaixo da linha da pobreza.
Nos últimos cinco anos, essa porcentagem subiu de 26% para 39%, entre os quais 8% são indigentes —ou seja, não têm renda suficiente para um nível mínimo de alimentação. Os últimos dados do Indec (Instituto Nacional de Estatística e Censos) são do segundo semestre de 2022, e as expectativas são de que tenham aumentado.
Nesse contexto, os furtos notificados na capital argentina tiveram um salto de 10% de 2019 para 2022, excluindo os anos de pandemia, de acordo com números do Ministério da Segurança. Foram 55 mil delitos desse tipo no ano passado, metade do registrado pela cidade do Rio de Janeiro e um quarto do registrado em São Paulo (que não inclui na conta os furtos de veículos).
Considerando a diferença no tamanho das populações, a taxa de furtos por 100 mil habitantes em Buenos Aires chega a superar a cifra carioca, mas é mais baixa que a paulistana. É preciso, porém, levar em conta que os dados não são produzidos pelos mesmos órgãos e que a subnotificação nesse tipo de crime é grande, podendo haver mais peso em uma ou outra capital.
A portenha Gabriela López, 45, por exemplo, não foi à delegacia em nenhuma das três vezes em que levaram seu celular nos últimos quatro anos. A primeira delas ocorreu em meio à multidão na marcha do orgulho LGBTQIA+, no centro. “Me surpreendi porque, naquela época, era uma forma de roubo ‘inovadora’. Agora é bem comum, e todo mundo está mais atento”, conta a professora de espanhol.
Já os outros furtos ocorreram em pontos de ônibus na mesma região, onde ficam pontos turísticos como a Casa Rosada, o teatro Colón e o Obelisco. A forma também foi outra bastante frequente na capital, pelos chamados “motochorros”: “moto”, de motoqueiros, e “chorros”, da gíria local para “ladrões”.
“Estava tirando uma selfie para mostrar à minha amiga como estava vestida para a festa, como uma estúpida, e ele passou na contramão, pelas minhas costas”, conta ela, aos risos. Desde então, quando precisa mexer no celular por mais tempo na rua, a argentina costuma se encostar em alguma parede ou na entrada de algum prédio.
Também ficou mais atenta em cafés depois que viu uma amiga cair no mesmo golpe do vendedor de bolsas num restaurante em Palermo —região que concentrou o maior número de furtos da cidade (12%) em 2021, último ano com dados por bairros. Tempos depois, quando aconteceu de novo com sua mãe, já estava preparada para, num impulso, tirar as bolsas da mesa e evitar o furto.
“Mas não é algo que eu me preocupe muito. Acho que vivemos em uma cidade supersegura e que o maior problema é a fome e a pobreza. A insegurança é mais real em algumas partes da região metropolitana de Buenos Aires, mas não nos bairros centrais da capital”, diz ela.
O governo da capital federal argumenta o mesmo. Um alto funcionário do Ministério de Justiça e Segurança (o equivalente a uma secretaria do Distrito Federal), que preferiu não se identificar, defende que o aumento de furtos não é algo que deva alarmar os turistas e que Buenos Aires segue sendo extremamente segura, com homicídios e roubos armados batendo os menores níveis dos últimos anos.
Ele admite, porém, que esse tipo de delito não é fácil de resolver, porque muitas vezes a vítima não registra o caso ou porque ele ocorre em áreas sem câmeras. Também lembra que, além da pobreza, o próprio crescimento do turismo, impulsionado pela desvalorização da moeda, pode ter elevado o número desse crime.
A segurança é um tema que tem mexido com as eleições à Presidência argentina, cujas primárias ocorrem em agosto. “Quero uma Argentina onde as pessoas não tenham que pensar como evitar serem roubadas ou feridas”, disse no início do ano o chefe do governo da capital, Horacio Larreta, ao anunciar novos investimentos na área. Ele concorre com Patricia Bullrich, ex-ministra de Segurança do país, pela coalizão de oposição.
Fonte: Folha de S.Paulo