Nesses dias, tenho penetrado em universos que vão além do cartão-postal

Esta semana estive num lugar que há anos sonhos conhecer: o Irã, mais especificamente na fronteira dele com o Iraque. Fui também a Bucareste, que conheci em 2004, e foi estranho voltar para lá. Matei as saudades da Índia —e que saudades! Ah! E encerrei as viagens ontem mesmo em Gana —e me recriminei por até agora não ter dado mais atenção a este canto da África.

Aos que estão lendo isso com certa indignação, revezando o olhar entre a tela do computador —ou, com um pouco de sorte, do próprio jornal— e a janela, a única paisagem possível em tempos de confinamento, eu peço calma: não saí do meu isolamento voluntario já de duas semanas.

Verdade que tenho deixado meu apartamento no Rio aos sábados, quando, na nobre intenção de levar informações sobre a crise do coronavírus que atravessamos, vou aos estúdios do meu programa, que é apresentado ao vivo.

Trabalhamos em equipe reduzida e respeitando a segurança e a saúde de todos. E m seguida volto para minha casa. Que é exatamente de onde escrevo isso para você. E de onde também pude visitar todos os países citados acima. Sim, daqui, da minha mesa, de onde posso explorar qualquer quanto da Terra.
Há incontáveis blogs e páginas no Instagram de nobres e criativos viajantes. Perfis de conhecidas fontes aventureiras (National Geographic) e séries desconhecidas e fantásticas (já viu “Somebody Feed Phil”?). Mas as viagens que fiz recentemente foram por um caminho alternativo: o cinema.

Às vésperas de entrar em quarentena, descobri um aplicativo que, embora eu sonhasse com ele há tempos, nunca soube que existia. Por cerca de R$ 20 por mês, o Mubi te oferece títulos quase impossíveis achar em um serviço de streaming convencional. Assinei e, desde então, redescobri a excitação de separar uma hora do dia para ver um filme, como quando a gente punha roupa boa para ir ao cinema.

Há ciclos de diretores —Louis Malle, Joseph Lerner, Yüzô Kawashima. Seleções de festivais, como o Berlinale. Mas sobretudo, há produções do mundo todo. E que te permitem conhecer destinos muito além do “city tour”.

De Gana, ganhei uma história de um casal que quer pegar um trem para a mulher dar à luz na cidade de sua mãe. “Keteke”, do diretor Peter Sefudia, é uma mistura de suspense e comédia com toques locais. Que já me fez querer conhecer os ganenses, quando eu puder viajar de verdade de novo, claro.

Em “Bruce Lee e os Fora-da-Lei”, Joost Vanderbrug mostra os subterrâneos da capital romena, documentando os “órfãos de Ceausescu” —a miséria por uma ótica inesperada.

Pela Índia, o diretor Kamal Swaroop me levou por um caminho bem experimental. Imagine um Glauber Rocha indiano revendo histórias, costumes e paixões daquela cultura tão distante da nossa.

Mas a escala em que mais me emocionei foi a do Irã. Em “Tempos de Cavalos Bêbados”, Bahman Ghobadi conta a história tristíssima de irmãos pequenos que têm de sobreviver na dureza de um vilarejo na fronteira com o Iraque. Fora as paisagens belíssimas, há tempos um filme não me fazia chorar assim.

Cada vez que viajamos, interagimos com uma parte muito pequena do cotidiano de um determinado país. Todos os que citei aqui hoje nos fazem querer explorar o que eles têm de bom. Mas há sempre outros lados…

Porém, o choque de descobrir aspectos mais fortes e até sombrios das culturas que sonhamos visitar (ou revisitar) jamais nos tira a curiosidade. Pelo contrário: nos envolvemos ainda mais com nossos destinos.

Por exemplo: em cartaz agora no Mubi, “O Som ao Redor”, aclamado trabalho de pernambucano Kleber Mendonça Filho. Um chamariz para os turistas? Dificilmente. Um retrato da alma brasileira? Talvez uma das infinitas maneiras de entender quem somos.

​​​​​E é assim que sigo viajando esses dias, pelo cinema. Menos para tirar selfies em monumentos famosos do que para penetrar em universos densos e complexos que vão muito além do cartão-postal.

Fonte: Folha de S.Paulo