No limite, temos diários

Salva uma ou outra escala imprevista, este é o texto de número 200 que escrevo neste espaço de Turismo nesta Folha. Um número precioso, maior até que o de países que existem no nosso modesto planeta.

Esta conta não é mesquinha. Evoco-a agora porque em 2013, o ano em que comecei com esta coluna, pensava em escrever uma crônica sobre cada país que eu havia visitado, na época, pouco mais de cem.

É pouco provável que hoje eu teria chegado aos 195 hoje contabilizados —193 mais o Vaticano e a Palestina. A pandemia interrompeu minha contagem em 114 nações, um placar que será retomado logo depois da minha segunda Astrazeneca, em setembro.

Mesmo imunizado, estou ciente, ainda tenho que contar com a boa vontade (e a fé na ciência) de outros governos em aceitar como turistas os desafortunados habitantes de um país que registra quase mil mortos pela Covid para cada ano de sua existência.

Mas é certo que voltaremos em breve a viajar e, com isso, retomar a essência maior destas linhas. Enquanto esse dia não vem, claro, temos os livros. Melhor, os diários de viagem.

Tenho mergulhado em narrativas fantásticas, como por exemplo o instigante “Que paraíso é esse?”, da italiana Francesca Borri (editora Âyné), sobre o qual quero escrever aqui assim que o concluir. Entre outros. Nenhum relato, porém, me deixou mais fascinado do que uma curiosa obra que encontrei por acaso.

Perambulando numa livraria recentemente, me deparei com um objeto que não se encaixava em estante alguma. A caixa, decorada com carimbos de imigração e réplicas de etiquetas de viagem (de fato coladas da superfície, para dar mais autenticidade) guardava oito pequenos volumes com destinos insólitos.

Brasil, Angola, Sierra Leone, Polônia, Índia, Moçambique, Tanzânia, Ilhas Canárias. As capas, de cores diferentes, estampavam em ouro o convidativo título italiano: “Gli incredibili viaggi di Massimo Pietrobon”, em português “As incríveis viagens de Massimo Pietrobon”.

De imediato, aquele nome não me disse nada, mas me senti logo atraído por aquilo. Ao perguntar o preço, me assustei: quase o de um bilhete GRU/SSA, em promoção! Levei duas semanas para decidir que valia o investimento. Voltei lá e comprei os diários.

Organizados pela Editora Caseira, que eu não conhecia, os cadernos oferecem poucas pistas da sua origem. Num breve posfácio, Gustavo Reginato, responsável pela publicação, celebra a fortuna de receber essas anotações de um mochileiro (diferenciado) e ter a chance de editá-los.

Com faro de jornalista, fui folhear suas páginas em buscas de mais pistas, mas perdi esse foco em poucos minutos, encantado com o que vi. Comecei aleatoriamente por Moçambique, destino que conheci bem. E logo me perdi num roteiro onírico.

Entre croquis e pensamentos, frases e versos, retratos e rabiscos, Massimo Pietrobon conseguiu superar minhas próprias reminiscências e me transportar numa verdadeira viagem de sensações, memórias e sonhos.

Entre suas paradas, ainda não fui à Polônia, a Sierra Leone nem às Ilhas Canárias. Mas ter estado ou não nas escalas do autor não tinha a menor importância para eu aproveitar a leitura. Seus rascunhos e suas palavras nesta edição belíssima tiveram o poder de me levar aonde nenhum dos meus 14 passaportes o fez até hoje.

Assim, peguei carona num outro tipo de viagem, feita de lembranças e imaginação, esboços e inspiração. Delirante, sem dúvida —​e eu devo estar passando por isso mesmo, depois de tanto tempo sem viajar pelo mundo.

Mas que delícia de delírio! E que achado ter encontrado essa obra justamente agora, quando comemoro 200 relatos de viagens minhas. Que são também uma espécie de diário.

Não tenho qualquer talento para a ilustração nem garranchos. Longe disso! Espero, porém, que, nessas palavras soltas aqui por tantas semanas a fio, eu tenha conseguido fazer o mesmo que Massimo Pietrobon fez comigo: te ajudar a escapar…

Fonte: Folha de S.Paulo