O Japão num balcão

Semanas atrás li, aqui neste mesmo espaço, mas com a assinatura do meu colega Zeca Camargo, uma crônica de saudades de Paris, com uma dica para se confortar à distância: a série “Dix pour Cent”, da Netflix.

Apaixonado por Paris como ele, não apenas segui o conselho (na série, deliciosa de assistir, realmente a cidade vira um personagem involuntário, mas forte), como ainda me atrevo a roubar-lhe a ideia.

“Midnight Diner: Tokyo Stories” também é uma série de TV, também da Netflix —mas a cidade é outra.

Há outra diferença: enquanto em “Dix pour Cent” Paris é como uma moldura, o tempo todo valorizando a movimentação dos personagens (agentes de artistas de cinema), nessa série Tóquio aparece mais discretamente, de um jeito mais sutil, através de seus personagens.

Bem antes da pandemia eu já andava cansado de acompanhar séries no streaming. E quanto melhores elas são, pior: nos capturam por horas a fio, impiedosas, desprezando friamente nossas outras necessidades e afazeres.

Varei madrugadas hipnotizado pelas reviravoltas da primeira temporada de “Homeland”; depois fui abduzido por “Breaking Bad”, daquele mesmo jeito que anos atrás avançava rumo à aurora (“só mais um capítulo”) sem desgrudar das vertiginosas páginas da trilogia “Millennium”, do sueco Stieg Larsson (1954-2004).

Então resolvi que focar filmes e documentários, mais do que séries. Quebrei o jejum, é verdade, assistindo ao “The Morning Show” e “The Loudest Voice”, no mínimo pela séria reflexão sobre minha profissão, o jornalismo; ou a séries com episódios curtos e independentes, sem a ansiedade de ver a continuação (como os divertidos “O Método Kominsky” e “Au Service de la France”).

Nessa pegada —e ainda por cima com a isca de ter a comida no enredo—, eu fui fisgado pela “Midnight Diner: Tokyo Stories”.

Uma série a que, agora na segunda temporada no Brasil, venho assistindo com a parcimônia de quem come um sushi de cada vez, apreciando cada bocado.

Se me sobra meia horinha, vou lá e saboreio um episódio. E “vejo” Tóquio por todo lado, embora o principal cenário seja um minúsculo restaurante com apenas um balcão, aberto somente de madrugada, da meia-noite às sete da manhã.

Esta “lanchonete da meia-noite” (daí o título em inglês, e também em japonês, “Shinya Shokudo”) é baseada no mangá homônimo de Yarō Abe.

Nela, o dono e cozinheiro, chamado apenas de Master, recebe pela madrugada todos os tipo de personagens que ali se entrelaçam com suas histórias pitorescas. Ele fica numa ruela do nevrálgico bairro de Shinjuko (a estação de metrô homônima é a mais movimentada do mundo).

O menu fixo do restaurante é quase nada: uma sopa de missô com porco e vegetais, sakê, shochu e cerveja.

Mas o chef faz tudo o que o cliente quiser, desde que tenha os ingredientes. E assim, cada episódio leva no título o nome de um prato, que tem relação com os personagens ou as situações que se desenrolam.

A série me faz viajar por uma Tóquio que não é a mais aparente para o visitante. A ruela onde fica o restaurante é o oposto das iluminadas e coloridas avenidas do mesmo bairro, ou do brilho endinheirado da avenida Omotesando, ou do alucinante cruzamento de Shibuya.

No balcão não são servidos sushis ou tempuras —os pratos são no geral prosaicos, descomplicados, mas de aparência deliciosa: um simples inhame (que a tradução chama de batata-doce…) refogado, uma omelete recheada de arroz, presunto empanado.

Os frequentadores da madrugada também não se parecem com a imagem dos japoneses que encontramos nas lojas e restaurantes chiques para turistas.

Mesmo mantendo um certo recato típico do país, ali as barreiras de polidez formal e fria se dissolvem entre as mordidas e os goles —e as pessoas esbanjam seus sentimentos (senhores caem no choro), sua sexualidade (há prostitutas e travestis), seu inconformismo (um japonês querendo casar com uma coreana apesar das barreiras racistas, uma garota de programa apaixonada pelo gigolô, um empresário enfrentando o fantasma da mãe).

E tudo isso —inclusive a existência de um modesto restaurante que pode ter comida excelente, aspecto em que Tóquio é a melhor cidade do mundo— revela um Japão ao qual possivelmente o turista não se atente. Mas que está ali, brotando nos meros 12 lugares de um balcão da madrugada.

Fonte: Folha de S.Paulo