O Pantanal negro que a Globo não mostra

A novela ‘Pantanal’, da TV Globo, é uma das raras oportunidades de ver a região Centro-Oeste na tela da emissora mais assistida do país e em horário nobre. Algo que não tem sido muito comentado é a falta de representatividade de atores da região, além do sotaque bizarro que alguns atores, em sua maioria vindos do Sudeste, reproduzem. Assim como ocorre em novelas que se passam na Bahia, por exemplo, e que tentam imitar um sotaque nordestino “universal”, que não existe na região. Na atual novela das nove há um sotaque caipira universal grotesco. Ninguém no Mato Grosso do Sul fala daquele jeito. Estamos perdendo uma oportunidade única de ver atores da região na tela (só o Almir Sater e o filho é muito pouco), reproduzindo nosso jeito de falar (sou nascido no Estado), de forma mais genuína e com mais repertório da cultura local.

Para além dessa falta de representatividade que pouco repercutiu na imprensa especializada, há outro fator interessante: a baixa participação de atores e atrizes negros naquele Pantanal da novela, que agora ganha os integrantes do núcleo da família negra de Zuleika (da ótima Aline Borges) para reparar um pouco essa ausência. Já os povos indígenas são citados apenas na música de abertura cantada por Maria Bethânia, em um Estado que possui a segunda maior população indígena do país e vive um verdadeiro genocídio dessa população, sem que isso apareça em horário nobre.

O sobrenome “Marruá”, da personagem principal, é uma palavra do espanhol (cimarrón) e do francês (marron) que significam “quilombola”. O termo é de origem aruaque, indígenas que habitavam regiões do Brasil, Colômbia e Bolívia. “Essa palavra era usada para se referir a animais domesticados que se desgarravam e se tornavam bravos e revoltos. Essa mesma palavra também era usada para denominar seres humanos que fugiam do cativeiro e iam formar comunidades livres, ou seja, os quilombolas. É um flagrante linguístico da desumanização que as pessoas negras eram submetidas na época da escravidão”, destaca a mestranda da Escola da Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e pesquisadora Cinthia Gomes, citando trecho do livro “Crítica da Razão Negra”, de Achille Mbembe.

Em português, segundo o Dicionário Michaelis, “marruá” é um novilho ou touro muito bravo ou indivíduo sem experiência, que se deixa enganar facilmente. O touro que se desgarra do rebanho e se torna selvagem (marruá) é considerado um símbolo do Pantanal. A protagonista que carrega o sobrenome, no entanto, é branquíssima e nunca me convenceu na defesa da personagem.

Corumbá (MS) tem cerca de 100 mil habitantes, sendo o maior município em extensão do Pantanal e um dos maiores do Brasil. Por conta disso, é conhecida como a capital do Pantanal e tem entre sua população 71% de pessoas que se identificam como pretas ou pardas. A novela da Globo nem chega lá, já que as gravações ocorrem em Aquidauana (MS), mais próxima da capital, Campo GrandeQuem assiste ‘Pantanal’ todos os dias, não sabe que Corumbá tem 300 terreiros (a maior parte de umbanda), 10 escolas de samba e o maior carnaval do Centro-Oeste. Outra festa popular é a de São João, em 23 de junho, quando andores levam o santo para tomar banho no Rio Paraguai e nos terreiros louvam o orixá Xangô. A festa é reconhecida como patrimônio cultural nacional pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

Há muita invisibilidade e pouca valorização da cultura negra da região, como acontece no Brasil como um todo. Por lá, existem áreas de pessoas quilombolas como o Borroski e Maria Teodora e muitas famílias ribeirinhas que ainda vivem da pesca. Corumbá faz fronteira com a Bolívia e há muitos bolivianos na cidade. Saltenha, música, mantas indígenas, feiras e costumes se misturam ao jeito de ser do corumbaense.

Os indígenas da região produzem um artesanato único, feito com a fibra do camalote, planta aquática pantaneira. Leonida Aires de Souza, a Dona Eliane, é uma das artesãs que vive na Barra do Rio São Lourenço, e lidera o Renascer Pantanal, projeto que reúne mulheres artesãs. Descendente dos índios guatós, ela produz cestas, chapéus e objetos de decoração feitos pelas mulheres da comunidade –e recebe os turistas que vão para a Serra do Amolar, um dos lugares mais bonitos e intocados do Pantanal e que também não está na novela. Dona Eliane assiste ‘Pantanal’ com sua rede elétrica que foi instalada somente nesse ano e sonha em construir uma biblioteca para ter um local onde as crianças das 23 famílias que ali vivem possam ter estímulo à leitura.

Toda essa diversidade cultural ainda não é trabalhada pelo turismo que só vende a parte da natureza – que de fato é única e exuberante. Mas Corumbá é cultura, é preta e precisa mostrar isso para atrair mais e mais pessoas. A Bela Oya começou a desenvolver tours culturais na cidade, nos passeios pode-se visitar os terreiros de Dona Cotó e de dona Eunice. “Há uma mistura de povos e uma forte influência negra e indígena que são constituidores da identidade cultural de Corumbá, sendo perceptível tanto na gastronomia, na dança, na música, no artesanato, na literatura, nas artes visuais e nas suas manifestações religiosas”, defende Thayná Cambará, idealizadora do projeto.

A Fundação de Turismo do Pantanal, órgão da prefeitura responsável pelo turismo em Corumbá, não soube responder à reportagem quais tours existem ligados à cultura negra ou mesmo se há incentivos aos já existentes. Minha expectativa como sul-mato-grossense é a de que a novela seja um primeiro passo para que muitas pessoas possam visitar o estado, mas que possam conhecer sua cultura única, para além das paisagens incríveis. MS é preto e indígena e precisa ser reconhecido como tal!

Fonte: Folha de S.Paulo

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