Passividade é um perigo para o turista moderno, mas tampouco é inevitável

Agnes Callard, uma filósofa da Universidade de Chicago, enfureceu vários setores da internet em junho com um ensaio em que apresentou argumentos contra viajar. Embora, na realidade, fossem argumentos contra o turismo, já que ela isentou muitos tipos de viagem de sua crítica –as que são feitas a trabalho, para estudos, para fins pessoais ou políticos e para serviço beneficente.

O que restou para Callard desancar foi a viagem contemporânea do tipo bate e volta: a checklist de atrações no exterior, a busca por “grandes experiências” previamente definidas como tais e a expectativa de algum tipo de transformação pessoal. Para ela, tudo isso não passa de um exercício de autoengano.

Citando pensadores céticos em relação ao turismo e tão diversos quanto Walker Percy e G.K. Chesterton, Callard discorre sobre o problema da “locomoção” do turismo (“Fui à França.” Ok, mas o que você fez lá? “Fui ao Louvre.” Ok, mas o que você fez lá? “Fui ver a ‘Mona Lisa’.”), dos encontros superficiais com povos estrangeiros e da perspectiva do que vale a pena ser visto moldada por guias de turismo.

Ela argumenta que a falha fundamental do turismo é que ele promete crescimento pessoal e conversão, mas geralmente traz os viajantes de volta ao lugar de onde partiram, sem que tenham mudado em nada.

“O fato isolado mais importante relativo ao turismo é o seguinte: já sabemos como seremos quando voltarmos. Viajar de férias não é como emigrar para o exterior, matricular-se numa universidade, começar em um emprego novo ou se apaixonar. Embarcamos nessas experiências com toda a apreensão de alguém que entra num túnel sem saber quem será quando sair. O turista parte confiante de que voltará com os mesmos interesses básicos, as mesmas ideias políticas e as mesmas condições habitacionais. Viajar a turismo é um bumerangue: traz você de volta para exatamente o lugar de onde partiu.”

Por acaso, li o texto exatamente quando estava prestes a embarcar, com minha mulher e quatro filhos, para uma odisseia de 18 dias por Reino Unido, Holanda e França. Por isso eu me abstive de fazer qualquer comentário sobre a tese de Callard supondo –como todo outro turista que se ilude a seu próprio respeito— que eu retornaria da viagem mais iluminado que antes.

Agora, já de volta para casa e lidando com o que Percy descreveu como “os problemas de reingresso”, mal consigo me recordar do homem que eu era antes de a viagem começar, o que dirá recordar ideias sobre viajar que meu eu anterior pode ter tido antes da tentativa insensata de levar uma criança de três anos para conhecer capitais europeias e a paisagem britânica entre Stonehenge e as Highlands escocesas.

Mas, procurando lembrar aquele meu distante eu, recordo-me vagamente de ter tido duas reações ao ensaio de Callard. A primeira foi que ela estava identificando um problema real –um problema especialmente associado às forças da secularização e do desencanto que transformaram a promessa das viagens ao converter em meras turistas pessoas que no passado teriam sido peregrinas.

Como os turistas de hoje que vão e voltam do Louvre, os peregrinos do passado supunham que viajar lhes pudesse proporcionar alguma espécie de conhecimento ou iluminação especial. Mas eles tinham razões melhores para pensar assim, porque a ideia que faziam de peregrinação supunha uma interação com poderes e forças invisíveis, não apenas com locais físicos e seus habitantes meramente humanos.

As pessoas não partiam em peregrinação apenas para “encontrar a si mesmas”, seja lá o que isso for. Uma peregrinação podia levá-las para mais perto de um santo ou divindade específico, ou para diante de um oráculo ou altar especial em que perguntas essenciais poderiam ser respondidas e intercessões poderiam ser feitas. Ou a própria viagem poderia ter sido uma oferenda a Deus.

Essas expectativas foram levadas adiante na modernidade por meio do culto à natureza e do culto à arte. Os poetas românticos buscavam a essência numinosa em um prado alpino, depois de ela ter sido expulsa da cidade em processo de industrialização. O esteta queria entrar em comunhão com o bom, o belo e o verdadeiro, perambulando entre ruínas romanas ou contemplando a “Vênus de Milo“.

Mas esses cultos ainda pressupunham alguma ideia do absoluto, algum poder e vontade especial operando por meio de totens e locais diferentes. Contudo, a partir do momento em que o ceticismo arranca esse resíduo religioso, que o relativismo faz de toda a grandeza uma questão que depende do olhar do observador, as viagens podem degenerar e se converterem num processo em que a pessoa muda o local onde está, mas permanece fechada a transformações de tipo mais profundo.

Ou, pelo menos, esse é o pior cenário possível. Mas minha segunda reação ao texto de Callard foi que o tipo de turismo aviltado que ela descreve –o prisioneiro passivo de uma excursão de ônibus, o hiperativo colecionador de monumentos— é um perigo para o viajante moderno, mas não inevitável ou universal.

Para começo de conversa, o desencanto total é até certo ponto um mito: o mundo ainda resiste ao reducionismo, os deuses têm objetivos próprios. Você pode partir com a mentalidade de guia de turismo e se descobrir enfeitiçado por uma vista inesperada ou prostrado por uma obra de arte. Você pode vivenciar um despertar religioso mesmo estando no meio de uma excursão de ônibus pelas catedrais da França.

E se você não vivenciar esse tipo de encontro absoluto, ainda há espaço para o turismo ser edificante de maneiras que ultrapassam o mero entretenimento. A leitora de longa data de Jane Austen que perambula pelos jardins de uma mansão georgiana; o aficionado por história que toca as pedras desmoronadas da Muralha de Adriano; a mãe que já leu “O Conto de Jemima Puddle-Duck” uma centena de vezes, mas agora está no jardim encharcado da própria autora da história, Beatrix Potter.

Todos esses viajantes estão desfrutando uma extensão de sua educação, um aprofundamento de seu conhecimento, que não chega a ser uma conversão, mas é mais do que meramente um pouco de diversão.

A polêmica de Callard tampouco dá o devido valor ao aspecto comunitário do turismo, o compartilhamento de experiências e desventuras com amigos, familiares ou mesmo pessoas que você acaba de conhecer no ônibus de excursão. Para ela, um viajante aparentemente solitário fica eternamente patinando na superfície das coisas, e o aspecto de convivência parece estar totalmente ausente.

E, finalmente, o ensaio dela subestima o sentido em que fazer viagens de bate e volta pode ser uma habilidade em si, algo que você pode aprender, uma forma de maestria que testa seus limites enquanto planejador e alguém que se orienta no mundo.

Tornar-se um turista hábil, um turista plus, por assim dizer, pode transformá-lo do mesmo modo que seria o caso se você aprendesse marcenaria, estudasse pintura ou adquirisse jeito para a jardinagem –não em um movimento repentino, mas como uma aquisição em câmera lenta de habilidades que você não tinha.

Esses dois últimos aspectos do turismo estão presentes na minha cabeça neste momento porque arrastar quatro crianças por três países de avião, trem e carro obviamente não é uma maneira ideal de entrar em contato com o divino –e, de fato, nossos gestos mais evidentes nessa direção tenderam a dar em nada.

Perdemos a missa na Sacré-Coeur porque um de nós levou um tombo feio. Uma chuvarada repentina nos tirou da fila para entrar na Catedral de York, e as marés nos negaram acesso à abadia em ruínas da ilha sagrada de Lindisfarne. A adoração da arte prefere os iniciados adultos, e os olhares que recebemos quando nosso filho de três anos perambulava pelo Rijksmuseum não foram especialmente conducentes a uma comunhão profunda com Rembrandt.

Mas tivemos a experiência do turismo comunitário em abundância (além de certa dose de violência comunitária no apertado banco de trás da minivan). Do mesmo modo que a viagem de carro que fizemos no verão passado atravessando os Estados Unidos, nossas férias na Europa funcionaram não apenas como uma grande tour, mas como uma iniciação tribal –algo que, claro, é a função real das férias em família de modo geral: criar vínculos além de abrir perspectivas novas.

A verdade é que nunca fui um viajante especialmente bom. Caio facilmente nos padrões descritos por Callard, reconheço suas descrições de mediocridade dos turistas, evito os riscos e experimentos necessários para escapar do caminho batido recomendado pelos guias de turismo.

E o hábito recém-adquirido de nossa família de tirar férias épicas provavelmente é um esforço para compensar essa deficiência, confiando na loucura inerente às viagens prolongadas com crianças pequenas para me obrigar a manifestar uma ousadia que eu jamais exibiria se estivesse sozinho.

A outra verdade, porém, é que qualquer viagem suficientemente elaborada encerra uma gama extensa de modos e experiências, alguns educativos e enobrecedores, alguns decepcionantes e clichês, alguns vazios e outros transbordantes de significado.

Visto claramente, poderíamos argumentar que o mundo inteiro é permeado de majestade, razão por que os perfeitamente iluminados nunca precisam praticar o turismo. Mas há lugares onde a sublimidade é especialmente forte –forte o suficiente para penetrar a névoa de cuidados e obrigações, do ganhar e gastar, em que tão facilmente nos perdemos.

Sair em busca de tais lugares não substitui a busca por formas mais profundas de conversão e comunhão. Mas tampouco é um simples desvio ou distração dessas obrigações. O sublime se justifica.

Fonte: Folha de S.Paulo

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