Quando foi que deixamos o acaso e a imaginação de fora das nossas viagens?

Chega o roteiro de uma viagem bastante agitada: visitas a lugares históricos; degustações —de pratos e de vinhos; trajetos “panorâmicos” (bom adjetivo para disfarçar longos e talvez aborrecidos percursos na estrada); encontros sobre história da arte; recepções em hotéis… No quarto dia, algo interessante, uma pequena descrição da programação que dizia: “Tire o dia para você”.


Respirei aliviado. Enfim, 24 horas em que eu poderia fazer realmente o que eu quisesse —maravilha! No entanto, acostumado com os roteiros sempre tão precisos dos modernos concierges de viagem, desconfiei: era mesmo um dia livre ou um descuido da organização, que não conseguiu preencher o período com compromissos interessantes?


E então me repreendi. Será que eu não conseguia imaginar, na minha ansiedade de conhecer o lugar que planejo visitar no Carnaval, um momento de espontaneidade, de descobertas? Com nossa vontade de aproveitar tudo ao máximo, de sair de casa com tudo organizado, deixamos o acaso fora do nosso itinerário? Quando roubamos o espaço para a imaginação em terras que ainda não conhecemos?


Enquanto tentava responder essas perguntas, distraí-me na internet com um convite para participar de um leilão de pôsteres antigos. Sim, recentemente passei a frequentar sites desse tipo. E tenho me divertido. 


De máscaras africanas a relíquias do mundo pop —outro dia arrematei um acetato original de uma capa de disco dos Smiths, uma das minhas bandas favoritas de todos os tempos—, encontrei um novo prazer nesses “mercados de martelo”, uma referência ao gesto simbólico que o leiloeiro faz ao finalmente vender um item.


Os lances são raros, quase sempre os preços saltam da pechincha para o proibitivo, ainda mais na internet. 


Mas o que vale é justamente o encontro com peças com as quais talvez você nunca esbarrasse. Como esses pôsteres antigos. Entre anúncios de carro e álcool, encontrei um lote precioso: cartazes que até pouco tempo decoravam paredes de agências de viagem.


Alguns eram dos anos 1920. Outros poucos, dos anos 1960. Mas a maioria deles eram das décadas “de ouro” das viagens internacionais, os anos 1930, 1940 (pós-guerra) e 1950, quando cruzar o planeta trazia ainda certo glamour e, mais importante, a possibilidade de um mergulho no desconhecido. 


O que esses pôsteres pretendiam, então, era mexer com a curiosidade de quem estava ali escolhendo um destino. E eles tinham de fazer isso com uma imagem bem simples e convincente.


Para inspirar uma ida ao Sião (hoje, Tailândia), templos dourados e monges de túnicas amarelas. Beirute? Um camelo, uma estátua antiga e um beduíno tocando um instrumento de sopro. Uma banhista de traços art déco sugeria a francesa Côte d’Azur como o lugar mais ensolarado da Europa. 


Dois pares de esqui fincados na neve desenhavam um enorme ene de Noruega. Uma girafa sorridente representava a África do Sul, enquanto um sol brilhante, uma coluna de mármore e uma melancia (?) acompanhavam o nome de um lugar de sonhos: Itália. 


Havia conexões ainda mais abstratas. Um homem de chapéu e maleta, com um mapa de regiões cobertas de gelo, desafiava: “Para a Finlândia comigo”. Um arqueiro disparando em direção de lebres e raposas justificava: “Romênia, desde sempre o país da caça”. 


E, no mais enigmático para mim, a paisagem de uma plantação de arroz com um búfalo puxando um arado num terreno alagado (seus donos, seguindo de perto, só de shorts e chapéu) convidava: “O Oriente”.


Além de belíssimas evocações nostálgicas, os pôsteres me fizeram lembrar justamente de um tempo em que precisávamos não de roteiros minuciosos para sair pelo mundo, mas de algo tão tênue e impalpável quanto uma inspiração. Tínhamos a vontade de ir. O resto era por conta do lugar onde queríamos chegar. 


E fiquei com vontade de reviver isso na minha próxima viagem. Nem que fosse naquele único dia em que eu não tinha nada programado e podia ter inteiro para mim. Será que ainda consigo?


Fonte: Folha de S.Paulo