Quilombo Cafundó (SP) recebe turistas com língua própria

O Quilombo Cafundó, em Salto de Pirapora (SP), é um dos mais preparados do Brasil para receber turistas. Pedaço de Angola no Brasil, tem língua própria, agricultura, ervas, rezas, bebida, artesanato, estamparia com botânica, garrafada e acolhida produzidos por lá e oferecidos aos visitantes.

O primeiro a chegar no local foi Joaquim Congo, que ganhou a liberdade e as terras do seu antigo dono em 1876. Joaquim deixou como herança não apenas a propriedade, mas o cupopia, uma mistura das línguas Quimbundo e Quicongo. Ao longo dos anos, as terras foram sendo invadidas e os seus descendentes foram perdendo quinhões importantes. Já a língua tem sido mantida e batiza, por exemplo, o grupo cultural chamado de turi vimba, que significa “terra de negro”.

A artesã Regina Pereira, que faz parte da Associação Remanescentes do Quilombo do Cafundó, conta que a “Vó Efigênia”, que era parteira da região, chegou a ficar isolada nas terras por fazendeiros que tinham invadido o entorno. O local de difícil acesso ganhou o apelido de “Cafundó”. Ali, começava uma luta pela propriedade das terras, que envolveu ameaça de morte, justiça e tentativa de boicote da prefeitura de Salto de Pirapora, que não queria comprar os alimentos ali produzidos.

Em 2003, os descendentes de Joaquim Congo foram os primeiros de uma comunidade quilombola a pisar no Palácio do Planalto. Eles foram receber o título de 218 hectares de terras, ao abrir mão de disputar propriedades hoje ocupadas por mansões e pela própria cidade de Salto de Pirapora, que um dia pertenceu a eles. Nas terras, plantam 58 alimentos naturais, que hoje são chamados de orgânicos, como alface, feijão, abóbora, couve e beterraba.

Mas é o turismo que contribui para a comunidade ser conhecida. “É nossa fortaleza”, diz Regina. O roteiro passa pelo consumo de produtos orgânicos, a contextualização de como são feitos os artesanatos, há oficina de ervas e de como preparar seu próprio defumador natural, além de uma mostra da estamparia botânica, que usa a natureza para colorir e personalizar roupas e tecidos. Há ainda um grupo cultural, que canta, toca tambores e dança.

“A terra é o legado que nós temos”, diz Regina Pereira, ressaltando que o território é sagrado por ter abrigado pessoas com conhecimentos em ervas e rezas, que não estão nos livros. Hoje, cada produto produzido aqui carrega um pouco da história. O aumento da produtividade das terras e das visitações fez com que os jovens quisessem continuar no quilombo. Atualmente cerca de 135 pessoas moram na propriedade.

Entre as iguarias locais, está a “consertada”, uma cachaça com alfavaca de cravo, que inicialmente era uma garrafada feita para limpeza do útero da parturiente, mas ao ser “consertada” com pinga pelos maridos tornou-se uma bebida típica do local. As garrafadas medicinais feitas das ervas também são produzidas de forma artesanal e personalizada.

Quilombo é uma palavra banto que significa fortaleza. No continente africano, um lugar de treinamento de jovens para a luta. No Brasil, um lugar de resistência em que pessoas negras se juntaram para conseguir viver livres, primeiro da escravização e depois do racismo.

São muitas as histórias, lutas e atrativos do Cafundó. As visitas de escolas, grupos e empresas ao Quilombo podem ser reservadas pelo Instagram da comunidade e são organizadas também pela Rota da Liberdade, conduzida pela guia de turismo e griot Solange Barbosa.

O passeio pode ser feito em bate e volta a partir de São Paulo (130 quilômetros) ou Sorocaba (35 quilômetros) e é daquelas viagens em que produzimos memórias, reconectamos histórias e saímos mais fortes. Ganhamos todos a missão de não deixar que esqueçam as narrativas dos descendentes de Joaquim Congo.

Fonte: Folha de S.Paulo

Marcações: