Sobre o incêndio no Pantanal e o seu querido churrasco

No feriado do dia 7, postei no Twitter algo sobre o desalento e a falta de motivos para comemorar o Dia da Pátria. Então, uma pessoa sem relações de follow comigo comentou: “Lembrando que o fogo no Pantanal é patrocinado por quem cozinha animais.”

Em primeiro lugar, difícil achar o propósito do comentário. Imagino que o indivíduo em questão tenha acrescentado os incêndios no Pantanal à lista de desgraças do 7 de setembro: faz sentido, mas não estava no post por esquecimento meu. Aí foi ver quem eu era e resolveu mitar com o esculacho.

A fulana tem a hashtag #AjudaPantanal no nome de perfil e se autodenomina “doida por animais e veg”.

Ao puxar treta com quem não é da sua turma, a comentarista não quer ajudar o Pantanal coisa nenhuma. Nem ela, nem as franjas radicais dos movimentos vegano e vegetariano.

Tenho diferenças com os veganos, mas preciso frisar que esse não é o comportamento majoritário dos defensores dos animais. A maioria é gente sensata, tanto que o ataque aos onívoros (nesta questão em especial) não consta em nenhum dos portais oficiais do movimento.

É coisa de radicais que não pensam direito ou pensam torto, o que dá na mesma. Só que esses radicais não são tão pouco numerosos assim. Vicejam no Twitter acusações do seguinte teor: os comedores de carne são sócios da destruição do Pantanal.

A afirmação denota desonestidade intelectual e estupidez política. Comecemos pela falácia da coisa.

Algumas grifes de roupas, por distração seletiva, contratam o serviço das infames sweatshops, oficinas de trabalho escravo no Vietnã ou no Bom Retiro. Não raro essas marcas são pegas em flagrante e expostas globalmente.

Como o consumidor deveria reagir? Boicotando as marcas em questão, pelo menos até uma mudança sólida de postura? Ou exortando a população a nunca mais comprar roupas, uma vez que a indústria têxtil escraviza seres humanos?

Acusar os onívoros de cumplicidade com os incêndios no Pantanal equivale a acusar de leniência com o trabalho escravo qualquer um que não esteja nu. Um nonsense abjeto, capcioso, desonesto.

Assim como a tecelagem não precisa de escravos, a pecuária pode muito bem existir sem desmatar a Amazônia nem incendiar o Pantanal. O que está acontecendo nesses biomas é ilegal, é crime. Caberia ao governo fiscalizar, inibir e punir, mas o governo não quer agir.

Claro que a indústria da carne (em conluio com o agronegócio e com o aparato estatal, bom repetir) deixou pegadas no rescaldo da fornalha Pantanal.

Não sou um negacionista do impacto ambiental da pecuária. Concordo que o consumo de carne deveria diminuir, mas essa é uma missão hercúlea, algo que nem deveria ser aventado como solução quando a prioridade é apagar um incêndio.

Além do lobby econômico, existe um hábito alimentar por demais arraigado na população. Na população humana de todo o mundo, não apenas na brasileira. Nem todos os carnistas, termo pejorativo cunhado pela militância veg, são caubóis de motosserra em punho.

A mudança do padrão alimentar passa por informação, educação, conscientização e, lamento dizer, disposição para fazer política. Isso significa flexibilizar posições e traçar estratégias conjuntas com grupos que não comungam do mesmo ideário, ipsis literis.

O enfrentamento hostil só enfraquece uma causa –o combate à destruição ambiental– que precisa ganhar musculatura para ter alguma chance de vingar.

Daí a estupidez do radicalismo vegano.

Quantos são eles, os veganos? Não é fácil encontrar números confiáveis. Nos Estados Unidos, sites relacionados à doutrina estimam frações da população que variam do 0,5% aos 6%. No Reino Unido, crava o portal “The Vegan Society”, eles são 1,16%. E no Brasil?

Uma pesquisa feita pelo Ibope em 2018 aponta 14% de brasileiros autodeclarados vegetarianos. O site “WVegan”, ao projetar dados de outros países, estima que metade dos vegetarianos não consome nada de origem animal. Assim, 7% das pessoas seriam veganas no Brasil. Não me parece razoável que a proporção supere a dos EUA, mas vamos admiti-la como verdadeira.

Os 7% precisam conviver com os 93% que não são veganos. Chamá-los de assassinos, de cruéis e o escambau é cretino. Apenas fragmenta mais ainda as forças debilitadas que poderiam atuar em conjunto.

Parte desses 7% só admite cooperar com quem é igualmente vegano. É tudo ou nada, sem concessões. Assim não se chega a lugar algum, muito menos aos 50,1% necessários para ganhar qualquer refrega democrática.

Quando o Pantanal queimar todo, os santinhos radicais vão repousar a cabeça sem culpa sobre o travesseiro de paina 100% orgânica e pensar: nós queríamos salvar as onças, não os carnistas não deixaram.

Na boa: vão ver se eu estou lá no açougue da esquina.

Fonte: Folha de S.Paulo