Viajantes confinados criam roteiros de experiências para explorar destinos a distância

Feito dentro de casa, o único turismo possível durante a pandemia envolve muita pesquisa na internet, leitura, filmes e preparo de pratos típicos. Viajantes confinados criam roteiros completos para explorar destinos a distância.

De sua casa em Barcelona, a hispano-brasileira Violeta Yuste, 33, que trabalha na área de vendas, viaja com o marido todo sábado, desde que teve início o isolamento social. Ela procura filmes, músicas e receitas durante a semana e cria roteiros temáticos.

“Quando fizemos o primeiro roteiro nesse formato, para a Índia, fomos dormir com a impressão de que tínhamos feito algo ótimo. Nestes dias, é difícil ir para a cama se sentindo assim”, diz Violeta.

No sentido literal, uma viagem precisa de deslocamento físico e pernoite, mas neste momento é preciso rever os comportamentos e aceitar um novo uso para a palavra, diz Mariana Aldrigui, professora e pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP).

Para ela, mesmo em casa, é possível recriar componentes do turismo tradicional. “Há uma construção, preocupação com cardápio, com música e filmes. O que fica é uma sensação que se aproxima da viagem física”, afirma.

Depois de visitar a Índia, foi a vez de Violeta conhecer o Brasil –ela nasceu aqui, mas morou por pouco tempo no país. A programação teve Caetano Veloso, pão de queijo (com polvilho comprado em uma mercearia paquistanesa) e picanha (saída da seção “internacional” de um açougue argentino).

O filme eleito para o programa foi “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz, indicação brasileira ao Oscar de 2019 que retrata duas irmãs invisibilizadas pela sociedade patriarcal no Rio dos anos 1950.

“Foi supertriste, chorei. Quando você pensa em Brasil, pensa em samba e pessoas felizes. São clichês que você tem na cabeça, mas nesse filme nada é assim”, diz.

Para viajar em casa, Violeta segue a mesma lógica de quando está em outro país: conhecer mais do que os pontos turísticos. “Claro que você quer ver o Corcovado quando vai ao Rio. Mas também dá para passear por outros bairros.”

Ao organizar a viagem, afirma Mariana Aldrigui, o turista faz escolhas e entra em contato com o que é essencial para ele –parte importante do processo, que também acontece em casa.

O antropólogo Robson Lins Damásio, 33, sempre viu o planejamento de uma viagem como uma oportunidade de aprofundar o conhecimento sobre o local visitado. Agora, com mais tempo livre, ele continua com suas pesquisas em casa, no bairro da Saúde, em São Paulo, e aproveita para amarrar tudo em um roteiro.

“Sou formado em história e minha namorada trabalha com audiovisual. Juntamos esses conhecimentos com música, culinária, discutimos a realidade do país e assistimos a filmes relacionados”, diz.

O itinerário italiano, por exemplo, teve saltimbocca (carne feita com sálvia e presunto) e o filme “Um Dia Muito Especial”, de 1977. Dirigido por Ettore Scola (1931-2016), mostra uma visita de Adolf Hitler (1889-1945) a Roma enquanto acompanha o relacionamento de dois vizinhos, os atores Marcello Mastroianni (1924-1996) e Sophia Loren.

O México também já foi tema de programação. “Assistimos a um filme da fase mexicana de Luis Buñuel (1900-1983) e fizemos um mole com ingredientes que trouxemos de uma viagem para lá”, diz.

Mole é uma espécie de molho tradicional da cozinha daquele país, feito com uma dezena de ingredientes (principalmente especiarias e pimentas) moídos e cozidos.

“Quando você cozinha, tem acesso aos bastidores de um lugar, como se estivesse pegando uma rua lateral. Dá uma sensação de intimidade com a cultura”, diz Damásio.

A comida funcionou como gatilho para brasiliense Bárbara Lins, 34, produtora de conteúdo, começar seus roteiros. Ao recordar da melhor receita provada em uma viagem, Bárbara decidiu reproduzir em casa uma baguete que comeu em Paris. Depois de uma primeira fornada que não deu certo, a receita foi melhorando e ajudou a reviver a experiência de estar na França.

Depois disso, ela começou a fazer viagens que se estendem pelo fim de semana ao lado do namorado. No roteiro indiano, a programação teve butter chicken (frango com molho amanteigado) e os filmes “Lunchbox”, de 2014, e “Um Casamento à Indiana”, de 2001.

Antes da cozinha e da sessão de cinema, Bárbara criou sua própria playlist acessando a relação de músicas mais tocadas da Índia no Spotify. “Me surpreendi com um panorama que não tinha só o tradicional. É um hábito que vou levar para as viagens físicas.”

Como o turismo feito em casa exige planejamento, a empresária dedica tempo durante a semana para a pesquisa. “Estou fazendo roteiros mais detalhados do que antes. Nunca tinha parado para estudar músicas ou temperos. Isso deixa a experiência diferente”, diz.

Os programas têm funcionado bem, mas Bárbara sente falta de dois elementos do turismo convencional: a conexão com moradores de outros países e as descobertas não programadas que as viagens proporcionam. “Em casa estamos em um ambiente controlado. Ninguém vai colocar mais pimenta no meu prato do que eu esperava”, afirma.

Visite o México de casa

Programação criada por Robson Lins Damásio, 33, antropólogo

Cardápio Frango com mole (molho tradicional à base de dezenas de ingredientes, como especiarias e pimentas, moídos)

Música Canções de Chavela Vargas (1919-2012), que nasceu na Costa Rica mas passou boa parte da vida no México, onde se tornou intérprete conhecida de músicas “rancheras”

Filme “O Anjo Exterminador”, do surrealista Luis Buñuel (1900-1983), que fez filmes com Salvador Dalí (1904-1989). Buñuel nasceu na Espanha, mas viveu parte da vida no México, onde morreu

Visite a França de casa

Itinerário planejado por Bárbara Lins, 34, produtora de conteúdo

Cardápio baguete de fermentação natural e ratatouille (prato tradicional da cozinha da Provence, região sudeste da França, feito com vegetais como cebolas, pimentões, abobrinhas e berinjelas em pedaços e cozidos com ervas)

Música playlist com clássicos de Édith Piaf (1915-1963) e músicas contemporâneas, entre elas algumas da cantora Zaz

Filmes “J’ai Perdu Mon Corps”, de 2019, nomeado ao Oscar na categoria melhor filme de animação, e a comédia “Le Grand Bain”, de 2018

Visite o Japão de casa

Roteiro feito por Violeta Yuste, 33, que trabalha na área de vendas

Cardápio misô, udon (massa feita com farinha de trigo mergulhada em caldo) e sushis

Música a banda japonesa de poprock L’Arc-en-Ciel fundada em 1991, que teve diversas composições que foram parte de animes, filmes e videogames

Filme o documentário “Jiro Dreams of Sushi”, de 2011, que mostra o trabalho perfeccionista do sushiman Jiro Ono em seu restaurante em Tóquio, que já recebeu o Barack Obama quando era presidente dos Estados Unidos

Fonte: Folha de S.Paulo