Aderir a discurso anti-China na pandemia põe Brasil em posição vulnerável, veem analistas

Pessoas atravessam rio Yang-tsé em WuhanDireito de imagem ROMAN PILIPEY/Getty
Image caption Pesquisadores brasileiros avaliam os possíveis impactos da crise global gerada pelo novo coronavírus sobre as relações Brasil-China

Alvo de críticas de membros dos governos do Brasil e dos Estados Unidos durante a pandemia de covid-19, a China tem tentado responder com um reforço na imagem internacional de credibilidade.

Na visão de analistas, o objetivo do país é preencher o que vê como um vácuo de liderança global em um momento de crise – e de falta de uma ação global dos Estados Unidos.

Na avaliação de três sinólogos brasileiros, pesquisadores voltados a tentar entender a China e aproximar os dois países, o momento seria importante fortalecer a relação bilateral, em vez de ameaçá-la com declarações ofensivas.

“O governo chinês tomou para si e abraçou a ideia de ser uma espécie de liderança moral da crise”, avaliou Júlia Rosa em entrevista à BBC News Brasil.

“Enquanto os EUA se retraem em meio à tragédia, a China adotou uma postura mais condizente com uma grande potência no século XXI”, completou.

Rosa tem mestrado em Estudos de China Contemporânea pela Universidade Renmin e é fundadora, ao lado de Gabriel Dolabella, Jordy Pasa e Lívia Machado Costa da plataforma Shūmiàn (que significa algo como “por escrito”).

O projeto produz conteúdo analítico em português e em espanhol sobre a China a fim de “estabelecer pontes de entendimento, criar novas oportunidades e otimizar as relações políticas, econômicas e culturais a China e a América Latina”. A ideia, eles explicam, é romper a barreira de desconhecimento em relação a um dos países mais importantes do mundo, e aproximar a China do Brasil.

Em entrevista concedida coletivamente, Rosa, Costa, e Pasa avaliam que a crise global gerada pelo novo coronavírus é um ponto importante dessas relações, podendo servir tanto para fortalecer os laços diplomáticos e comerciais quanto para colocar em risco uma parceria fundamental no momento em que a China busca se promover internacionalmente.

Os três estão fora da China atualmente por conta dos impactos da pandemia no país, mas mantêm laços e analisaram o posicionamento chinês durante a pandemia e os possíveis impactos das declarações do ministro da Educação, Abraham Weintraub, e do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que foram consideradas ofensivas pela Embaixada da China.

‘Nada a ganhar’

A avaliação deles sobre a atuação da China contrasta com o tom adotado pelo governo de Donald Trump nos EUA, por membros do governo brasileiro e até mesmo por especialistas independentes que criticam a postura chinesa na condução do combate à covid-19.

O presidente americano se referiu várias vezes ao novo coronavírus como “vírus chinês”, enquanto o ministro da Educação do Brasil postou em rede social um texto em que sugeria que a China sairia fortalecida geopoliticamente da crise mundial de saúde.

Mesmo sem chegar ao ponto de acreditar que o vírus tenha sido criado em um laboratório chinês, como dizem teorias da conspiração, a China tem sido criticada por ter demorado a reagir à propagação do novo vírus.

Além disso, pesa contra o país a falta de transparência do regime autoritário, que põe em dúvida os dados oficiais do país sobre contaminação por covid-19 passados à Organização Mundial de Saúde e ao resto do mundo.

A China também é alvo de protestos internacionais por censurar abordagens que questionem a versão oficial para o combate do país ao novo coronavírus.

Independentemente de problemas na atuação chinesa, na avaliação dos jovens sinólogos que fazem a plataforma de análises das relações do Brasil com a China, é preciso levar a sério a postura do país que primeiro registrou casos do novo coronavírus, e que está atuando para ter uma maior presença internacional em meio à crise.

Segundo eles, o Brasil não tem nada a ganhar com o tom de provocação usado por membros do governo, especialmente quando adotada uma postura acusada de ser xenófoba e racista, como no caso do ministro Weintraub.

Ainda assim, eles argumentam que pode fazer sentido pensar que a crise global realmente pode abrir espaço para uma China mais atuante em geopolítica – até mesmo por conta da falta de uma outra liderança global.

Saúde e geopolítica

Enquanto países do mundo todo se mobilizam para combater a doença que já deixou mais de 250 mil mortos, as relações de poder global também se reestruturam para dar espaço a novas lideranças. E a China está atenta para tentar aproveitar o momento.

“A pandemia de covid-19, para além dos óbvios desafios que impõe, também é um território de disputa de narrativa geopoliticamente, com duas grandes potências no embate: China e Estados Unidos”, explicou Costa, que é mestre em Estudos Chineses com ênfase em Relações Internacionais e Política pela Yenching Academy da Universidade de Pequim.

“A China tem preenchido um vácuo de liderança internacional surgido desde a ascensão de Donald Trump, e isso é exemplificado atualmente pelo crescente protagonismo chinês com ajuda humanitária durante a pandemia.”

Isso tudo, segundo ela, está dentro da estratégia traçada pelo governo chinês para suas relações globais. “O rejuvenescimento chinês, tanto propagado por Xi (Jinping, presidente chinês), perpassa necessariamente uma China mais geopoliticamente fortalecida no sistema internacional”, explicou. E a pandemia oferece uma oportunidade para o país neste sentido.

Direito de imagem Arquivo pessoal
Image caption Jordy Pasa, Lívia Costa e Júlia Rosa: pesquisadores são fundadores da plataforma Shūmiàn, que produz conteúdo analítico em português e em espanhol sobre a China

Para Rosa, a propagação do novo coronavírus se tornou uma oportunidade para a China, que há anos busca momentos de protagonismo internacional para demonstrar sua dedicação ao multilateralismo.

“O poder dos Estados Unidos na esfera global também emana de ser visto como referência de liderança. Nos últimos anos, a China tem impulsionado sua atuação na ONU e outras esferas similares, como o famoso discurso pró globalização do Xi Jinping no Fórum de Davos, em 2017, logo após a eleição de Trump.”

Na avaliação dos três sinólogos, seria um erro o Brasil minimizar a importância do país neste momento.

“A China tem um papel essencial, seria loucura dar as costas ao país que viu de primeira mão o desenvolvimento do covid-19”, disse Costa. Ela admite que cada país tem uma realidade particular, mas que ainda assim faz sentido tentar aproveitar o “conhecimento acumulado” pela China.

A experiência chinesa no combate à doença também é apontada como importante por Pasa, 26, que é mestrando em Relações Internacionais e Política pela Yenching Academy da Universidade de Pequim, mestre em Política Chinesa pela Universidade Renmin.

“A China está engajada na luta contra a covid-19 há mais tempo do que qualquer outro país. Desde janeiro, os chineses vêm acumulando experiência em como conter o novo coronavírus e tratar as suas vítimas. Para além disso, o país é responsável por uma parte significativa da produção mundial dos equipamentos médicos e de proteção individual tão importantes nesse momento”, disse Pasa.

“Pequim, que já se mostrou atenta à progressão da pandemia pelo planeta, pode oferecer contribuições fundamentais aos esforços de enfrentamento do vírus em escala global.

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Image caption China é principal parceiro comercial do Brasil, destino de quase 30% das exportações

Atritos diplomáticos marginais

O centro da atenção da China no processo de tentar alavancar seu status global é a disputa com os Estados Unidos, mas o Brasil acabou entrando no radar do país emergente nas últimas semanas por conta de atritos diplomáticos. Isso porque membros do governo e da família do presidente acusaram a China de ter responsabilidade sobre a pandemia, e de usar a propagação da covid-19 em seu benefício.

As tensões escalaram com respostas ríspidas da embaixada chinesa no Brasil. O presidente Jair Bolsonaro chegou a conversar com seu colega Xi Jinping, e declarou que os problemas haviam sido superados, mas novos atritos continuaram ganhando espaço em redes sociais, tornando a relação entre os dois países mais tensa.

Ainda assim, os especialistas em China avaliam que o Brasil continua não sendo uma prioridade do governo chinês no meio da pandemia, e o país parece apenas estar alinhado ao discurso anti-China dos Estados Unidos.

Direito de imagem Agência Brasil
Image caption Ministro Weintraub (foto) e Eduardo Bolsonaro fizeram postagens contra a China no Twitter

Segundo Rosa, os atritos gerados por declarações de Weintraub e do filho do presidente são vistos na China “como um ‘copia e cola’ do que está sendo dito por Trump e seus apoiadores”.

No fim das contas, as reações acabam sendo direcionadas ao governo americano. Nesse quesito, a repercussão é majoritariamente negativa. A diferença é que os EUA é um parceiro muito mais importante para a China do que o Brasil. Então, por enquanto estamos dando sorte que não somos tão populares”, disse.

Pasa, por sua vez, avalia que o Brasil acaba ofuscado pelo contexto das hostilidades entre China e EUA e do contexto maior de “disputa por hegemonia global, seja ela militar, econômica ou tecnológica, que obviamente não existe quando olhamos para o caso brasileiro”, disse.

“Não somos lidos com o mesmo nível de seriedade por Pequim, o que, a depender da situação, pode funcionar contra ou a nosso favor. Por um lado, retaliações mais graves são pouco prováveis, se engajar em um conflito com o Brasil está muito longe do radar chinês. Por outro, somos alvos mais vulneráveis, e logo menos capazes de nos defender caso o atual desconforto entre os dois países se agrave”, explicou Pasa.

Apesar da resposta da Embaixada chinesa no Brasil e da atenção dada pela mídia nacional ao caso, os atritos não chegaram a ganhar destaque de forma significativa na China, explicou Costa.

“Na internet chinesa, as menções ao Brasil estão mais relacionadas à resposta ao covid-19, com destaque às assimetrias entre governos estaduais e federal e as declarações de Bolsonaro dizendo se tratar apenas de uma ‘gripezinha’. O ‘Trump dos trópicos’, como Bolsonaro é descrito na China, tem sido mencionado como um agente passivo durante a pandemia. Surpreende o público chinês um chefe de Estado não tratar a emergência do covid-19 com maior assertividade.”

Para os especialistas em China, essa “marginalidade” do Brasil pode ter efeitos positivos, reduzindo impactos de quaisquer tensões, enquanto os EUA continuam sendo reconhecido como o “rival” real dos chineses.

“Os danos causados aos nossos laços com Pequim pelos desenvolvimentos das últimas semanas ainda não são irreparáveis. Apesar de a China já ter demonstrado seu descontentamento com as declarações de Weintraub e Eduardo Bolsonaro, nenhuma medida direta de retaliação foi anunciada. Caso insistamos em culpar os chineses pela pandemia do novo coronavírus, porém, e em se utilizar de concepções discriminatórias para acusá-los, a situação pode piorar. O Brasil tem muito a perder com a degradação das relações sino-brasileiras”, explicou Pasa.

Política e tecnologia

Em meio à crise diplomática gerada por críticas de membros do governo à China, o presidente Bolsonaro conversou com Xi Jinping e disse ter resolvido todas as desavenças. Dias depois, o Brasil autorizou a empresa chinesa Huawei a participar de leilão do 5G no país, favorecendo interesses chineses.

Para os editores da plataforma Shūmiàn, a proximidade entre os dois acontecimentos pode ter sido mais uma coincidência do que um uso político das desavenças por parte da China.

Direito de imagem SERGIO LIMA/Ag. Brasil
Image caption Pesquisadora afirma que Bolsonaro tem sido mencionado como um ‘agente passivo’ durante a pandemia: ‘Surpreende o público chinês um chefe de Estado não tratar a emergência da covid-19 com maior assertividade’

“Esse tipo de deliberação, que leva tempo e envolve cálculos políticos complexos, não costuma ser formulada do dia para a noite”, avaliou Pasa. “Se tivesse que apostar, diria que decisão já havia sido tomada e que a tensão recente tenha, no pior dos cenários, reforçado ou adiantado seu anúncio.”

O pesquisador de China comentou ainda os alertas de críticos que dizem que o governo chinês pode usar o avanço da sua tecnologia 5G para espionar países em que consigam entrar, criando riscos à segurança do país.

Segundo ele, por mais que a preocupação com segurança nacional seja legítima, não há indícios de que a China realmente lance mão desse meio para infringir a soberania de outros países. Além disso, ele ressalta que “não podemos ser seletivos em nossa cautela”.

“Como a história indica, espionagem não é prerrogativa de qualquer país. Se não é possível garantir que a China não vá se utilizar dos recursos ao seu alcance, sejam eles quais forem, para garantir seus objetivos, o mesmo pode ser dito sobre qualquer outro país. Preocupar-se com o caso chinês enquanto ignora-se os mesmos riscos vindo de outras nações, no fim das contas, diz mais sobre o que pensamos da China do que sobre o riscos efetivos da participação do país na instalação da 5G no Brasil”, disse.

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Fonte: BBC