Como poder, isolamento e busca por legado levaram Putin a arriscar nova incursão na Ucrânia

  • Mariana Sanches – @mariana_sanches
  • Da BBC News Brasil em Washington

Putin e Macron em reunião

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Cena é símbolo do isolamento de Putin

Com 6 metros de comprimento e 2,60 metros de largura, a mesa na qual Vladimir Putin recebeu o presidente francês, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz, é um símbolo da atual condição do líder russo no mundo.

Putin é visto ao mesmo tempo como uma figura poderosa, que não pode ser ignorada, e insular, com intenções cada vez mais impenetráveis e aliados internacionais escassos e de conveniência.

Ele é o protagonista de uma tensão global. Desde o fim de 2021, distribuiu mais de 100 mil soldados ao longo da fronteira com a Ucrânia e, nos últimos dias, reconheceu a independência de duas Províncias do país vizinho, mandando em seguida à região o que chamou de “tropas de manutenção de paz”.

Os Estados Unidos e seus aliados europeus não acreditam, no entanto, que as ambições militares de Putin se encerrem nessas ações.

Na quarta-feira (23/2), de acordo com o Pentágono, Putin teria 80% das suas tropas na região em “posição avançada” e prontas pra um ataque maciço.

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Veículos blindados na região de Rostov, Rússia

Seu poderio militar instalado em solo seria capaz de atacar a capital ucraniana Kyev e sustentar a maior guerra na Europa desde 1945.

O preparo bélico de Putin incluiria até a montagem de hospitais de campanha, com farto estoque de bolsa de sangue, vitais para operações em campo de batalha.

Entre outras demandas, Putin iniciou a negociação diplomática há mais de três meses – agora, praticamente interrompida – com a exigência de que a aliança militar Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) desse garantias de que a Ucrânia jamais se tornará um membro do grupo – o que Putin vê como um risco à segurança russa.

Putin chega aos 70

Mas suas motivações são, segundo especialistas, mais amplas. Há mais de duas décadas no poder, Putin se mostra mobilizado por revisionismos históricos que remontam não só ao fim da União Soviética, mas à queda do Império Russo e até mesmo à sua formação (séculos atrás), ressentimentos em relação ao Ocidente e preocupações com como seu período à frente do governo russo entrará para a história.

“Às vésperas de completar 70 anos, Putin está certamente preocupado com seu legado, e um dos ‘assuntos inacabados’ de sua gestão é justamente a relação com a Ucrânia”, afirmou à BBC News Brasil Brian Taylor, professor de Ciência Política da Syracuse University e autor de The Code of Putinism (O Código do Putinismo, em tradução livre).

De acordo com Taylor, quando Putin chegou ao poder, em 1999, muita gente, inclusive os especialistas em política russa, não acreditava que ele duraria muito tempo no cargo.

Até então um desconhecido agente do serviço secreto russo, a KGB, Putin foi o quarto primeiro-ministro a ocupar o cargo na Rússia em apenas um ano.

Ele assumiu nos estertores do impopular governo de Boris Yeltsin, período no qual os russos se viam de joelhos pela perda de status de potência global, após o fim da União Soviética, pela brutal desvalorização de sua moeda e pela crescente fome que assolava o país.

As memórias disso certamente ajudariam a moldar a política internacional do novo líder russo.

Putin se mostrou bem mais do que um burocrata da KGB e passou a operar desde então uma das máquinas de guerra mais poderosas do mundo – atualizada para se tornar também a maior especialista em cibersegurança global – e a sustentar a economia russa em níveis de crescimento constantes e robustos, comparáveis aos da China, embora pouco diversificada e dependente basicamente das indústrias de petróleo e mineração.

Com isso, reconstruiu a autoestima russa, o que em parte explica sua popularidade, que ele parece querer colocar à prova com suas recentes ações.

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Vladimir Putin está no poder na Rússia há mais de duas décadas

De seus anos na KGB, ele manteve o hábito de ser extremamente cauteloso com suas comunicações – até hoje, Putin não usa telefone celular – e conservou uma mentalidade propensa à alta suspeição, além de uma percepção trágica sobre o fim da União Soviética.

“Putin serviu à KGB na Alemanha Oriental durante o colapso do comunismo por lá. Mais tarde, ele qualificou o fim da própria União Soviética como uma grande catástrofe geopolítica. Putin parece genuinamente acreditar que a queda do regime soviético foi causada pela interferência de agentes externos na região, especialmente dos Estados Unidos. Uma espécie de conspiração ocidental”, afirmou à BBC News Brasil Adam Casey, cientista político especialista em Rússia da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.

“Essa maneira de pensar é uma marca central para entender as premissas de Putin e compreender como ele molda sua política externa.”

No governo, ele agiu para reconstruir ao menos em parte a potência soviética e aniquilar atividades de grupos separatistas – mantendo a integralidade do território russo.

Putin reverteu, à base de guerra, a independência da Chechênia, em 2000. Invadiu a Geórgia, em 2008, em apoio aos separatistas russos da Ossétia do Norte. E anexou a região da Crimeia, que era ucraniana até 2014.

E, se por um lado, a tomada de controle da Crimeia gerou sanções europeias e americanas tardias e a suspensão do G8 (o grupo dos sete países mais industrializados do mundo mais a Rússia), ela também catapultou os índices de popularidade do russo.

Agora, no entanto, as sanções aos movimentos de Putin, ainda de escopo menor do que a anexação de 2014, já se mostram mais rápidas e maiores.

Além de restrições de viagem e investimentos aos representantes da Duma, a câmara baixa russa, e à elite do país, por parte dos Estados Unidos e da Europa, houve ainda banimento ou restrições a bancos russos no mercado internacional e à tomada de empréstimo nos mercados europeu e americano pra financiar a dívida soberana do país.

Mas a medida de maior impacto foi o congelamento do gasoduto Nord Stream 2, pelos alemães, no qual os russos fizeram um investimento bilionário e que começaria em breve a escoar gás natural russo para a Europa.

Há, no entanto, ceticismo entre os próprios aliados quanto à efetividade dessas medidas para conter a Rússia.

Ancestralidade e segurança

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Líder russo se preocupa em como seu governo vai entrar para a história

Na noite de segunda-feira, 21/2, Putin fez um discurso de cerca de uma hora na TV em que sugeriu que apenas iniciou suas ações militares e as ancorou nas questões de segurança, mas não só.

Em busca de apoio popular para a investida, ele afirmou aos russos, por exemplo, que, caso a Ucrânia entrasse na Otan, os Estados Unidos poderiam posicionar mísseis em território ucraniano que atingiriam Moscou em meia hora ou em menos de cinco minutos, a depender do armamento em questão.

A expansão da Otan em direção ao Leste Europeu é notória – com a entrada no bloco de 14 países de esfera de influência russa – e incomoda a opinião pública russa e o governo.

Mas o líder não ficou apenas em aspectos práticos dos interesses nacionais. Putin falou bastante sobre a história russa e da região e sugeriu que a própria existência de um Estado ucraniano seria ilegítima.

Junto com Belarus, o líder russo enxerga na Ucrânia a chave da ancestralidade do povo russo. Em um artigo escrito em julho de 2021, Putin já deixava claro o quanto o tema o mobiliza e quão imbricados vê os dois países.

Ele afirmava que ucranianos e russos são um único povo (a despeito das línguas diferentes), “que compartilha o mesmo espaço histórico e espiritual”.

Putin afirmava ainda que Kiev, a capital ucraniana, é o berço do povo ancestral russo e que “a verdadeira soberania da Ucrânia só é possível em parceria com a Rússia”.

No discurso dessa semana, ele sugeriu que, se a Ucrânia quisesse continuar com a movimentação pró-Ocidente, a que chamou de “descomunização”, deveria devolver todos os territórios atribuídos ao país durante os anos de revolução socialista, incluindo Kiev.

Paradoxalmente, no entanto, foram as ações do Kremlin em 2013 (quando atuou para que a Ucrânia não se juntasse à União Europeia) e em 2014 (com anexação da Crimeia e financiamento contínuo de separatistas) que detonaram na Ucrânia um forte sentimento contrário ao enorme e poderoso vizinho.

Em 2014, as manifestações na Praça Maidan, no coração de Kiev, derrubaram o então governo pró-Rússia.

“Se a Rússia tentar derrubar o governo atual e instalar um aliado no comando, isso provavelmente não será fácil. Não apenas porque é significativo o risco de se tornar um pária internacional e de enfrentar uma catástrofe econômica, mas porque as ações russas desde 2014 dissiparam grande parte da boa vontade em relação à Rússia que existia anteriormente na Ucrânia”, diz Casey.

Ele explica que, por muitos anos, apenas cerca de 20% a 30% dos ucranianos apoiavam a adesão à Otan. Mesmo após a invasão de 2014, os números chegaram a 40%.

Mas, pela primeira vez, em fevereiro de 2021, a maioria dos ucranianos (56,1%) passou a apoiar a adesão à aliança militar.

“Esse sentimento se mostrou verdadeiro em todas as regiões do país”, afirma Casey, referindo-se a uma série de oito pesquisas conduzidas por Olga Onuch e Javier Perez Sandoval, da Universidade de Manchester e da Universidade de Oxford, e ligados ao projeto Mobilize, que monitora mobilizações de massa ao redor do mundo.

A mudança na percepção popular ucraniana pode ter ajudado a disparar o sinal de alerta que levou às ações de Putin neste momento, dizem os analistas.

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Moradores da cidade de Donetsk comemoram o reconhecimento formal da independência da República de Donetsk por Putin

“Agora, em sua terceira década no comando, Putin pode facilmente acreditar que, se não tomar ações mais decisivas, a Ucrânia se moverá ainda mais distante da Rússia”, escreveu Thomas Wright, diretor do Centro de Estados Unidos e Europa e pesquisador do Brookings Institution na revista americana The Atlantic, em dezembro de 2021.

Isolamento crescente

Decisões dessa complexidade podem ter sido facilitadas pela redução de vozes contrárias no governo russo.

Segundo Casey, o regime de Putin foi gradualmente se tornando cada vez mais personalista. Se durante muito tempo ele foi largamente apoiado pelas oligarquias locais, mesmo isso foi diminuindo nos últimos tempos – com rompimentos ruidosos com integrantes da elite em alguns casos.

Atualmente, Putin tem se mantido basicamente cercado de seus auxiliares de décadas, a maior parte deles também egressos da KGB.

E, enquanto se afastava de círculos exteriores, ele aumentava gradualmente seus instrumentos de poder para governar e reduzia a possibilidade de fiscalização e reivindicação da sociedade civil.

“Em seu discurso em 21 de fevereiro, Putin parecia ressentido e zangado, e isso não é novidade. Ele tem uma longa lista de queixas sobre o colapso da União Soviética e como a Rússia foi tratada pelo Ocidente”, afirma Taylor.

“Nos últimos dois anos, no entanto, durante seu autoisolamento em seu bunker para se proteger da covid-19, ele teve muito tempo para cultivar esses ressentimentos”, afirma o analista, notando que o líder russo reduziu drasticamente não apenas as viagens internacionais como a aparição em agendas públicas na própria Rússia durante a pandemia.

O isolamento de Putin e o fato de ter se cercado de homens que expressam publicamente sua lealdade a ele pode ter levado Putin a decisões mais ousadas do que tomaria há alguns anos, com acesso a informações mais contrabalanceadas.

“Ainda não sabemos exatamente o que a Rússia fará a seguir, mas os riscos de uma ofensiva no território ucraniano são muito altos, e uma invasão em grande escala claramente não pode estar descartada e pode até ser provável. Não há margem para acreditar em blefe”, afirma Casey. =

No ambiente internacional, Putin conta com poucos aliados. Seus apoiadores incondicionais são Venezuela, Cuba, Síria e Belarus.

A China, que recentemente expressou apoio ao líder russo, já que vive com Taiwan uma situação a seu ver análoga à da Rússia com a Ucrânia, agora tenta se equilibrar entre a necessidade de levar a sério a preocupação de segurança dos países – tecla batida por Putin – e a soberania ao próprio território – conceito basilar da política externa chinesa que Putin feriu.

Os chineses dizem defender uma saída diplomática. Índia e Brasil, que já demonstraram simpatia a Putin, também deverão seguir pelo mesmo caminho.

A pressão de europeus e americanos – que tentar demonstrar unidade publicamente – deve aumentar para que Putin fique cada vez mais isolado.

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Fonte: BBC