Coronavírus: por que é fundamental ‘achatar a curva’ da transmissão no Brasil

Membro da defesa civil do Iraque lança desinfetantes na grande mesquita de kufaDireito de imagem Getty Images
Image caption A luta contra o coronavírus gira mais em torno de retardar a disseminação

À medida que o coronavírus se espalha cada vez mais pelo mundo, autoridades de saúde têm tentado evitar o aumento acelerado do número de casos. “Achatar a curva”, como se diz, é uma medida crucial para evitar a sobrecarga dos serviços de saúde e limitar o número de mortes.

A Itália, com mais de 17 mil casos e 1.266 mortes, é o principal exemplo de país que está sofrendo para achatar essa curva. O Brasil, com menos de 100 casos confirmados, ainda está longe disso, mas já discute como evitar o mesmo cenário para não sobrecarregar o sistema.

Mas o que significa essa expressão, que chegou ao topo dos assuntos mais discutidos em redes sociais, e quão adequada ela é à realidade brasileira, que já registrou 77 casos da doença?

“Achatar a curva” significa desacelerar a disseminação do vírus para que o número de casos se espalhe ao longo do tempo em vez de haver picos no início.

O gráfico abaixo resume o cenário. Há uma “curva acentuada”, causada por um pico acelerado de infecções, em oposição a uma “curva achatada”, com casos mais distribuídos ao longo do tempo.

Um exemplo claro de “curva achatada” é o Japão. Ali, o número de casos foi de 1 para mais de 480 entre 16 de janeiro e 9 de março. Em média, quase nove casos novos por dia.

Por outro lado, um exemplo de “curva acentuada” é a Itália, onde os casos dispararam de 3 para mais de 9.000 entre 31 de janeiro e 9 de março. Em média, foram quase 230 casos novos por dia, montante 25 vezes maior que o Japão.

Mas por que isso importa?

Direito de imagem Getty Images
Image caption O número de casos de covid-19 na Itália disparou nas últimas semanas, sobrecarregando o sistema de saúde

A luta contra um surto de vírus não é apenas de contenção, mas também de retardamento da disseminação, um processo conhecido entre especialistas em saúde como “desacelerar” e “mitigar”.

Um salto do número de casos é um pesadelo para as autoridades: aumenta a sobrecarga sobre os sistemas de saúde a ponto de, em alguns momentos, levar a um colapso na capacidade de atendimento.

Um estudo da Universidade de Southampton, no Reino Unido, sobre o modelo chinês de combate ao coronavírus indica que se as medidas drásticas de distanciamento social tivessem sido adotadas uma semana antes na China, o número de pessoas infectadas seria 66% menor.

Estudiosos afirmam, no entanto, que esses números não podem ser simplesmente transpostos para outras realidades pelo mundo.

Mas enquanto na China foram usados recursos abundantes para levantar um hospital do zero em questão de dias e isolar pessoas de suas famílias por suspeita de infecção, na Itália o governo não tem adotado medidas tão restritivas, nem ampliado tanto a rede de saúde. O sistema local acabou sobrecarregado.

Na região da Lombardia, no norte italiano, uma das mais afetadas pelo coronavírus, hospitais têm afirmado não contar mais com leitos disponíveis por causa do pico de infecções.

Outro risco é o de que a equipe de atendimento fique sobrecarregada para além do volume de trabalho: em fevereiro, a Comissão Nacional de Saúde da China afirmou que mais de 1.700 profissionais foram infectados pelo vírus.

O quadro completo da “curva acentuada” pode levar também a uma taxa de mortalidade mais alta porque as pessoas podem enfrentar ainda mais obstáculos para obter o tratamento adequado.

Direito de imagem Getty Images
Image caption Ações de governo não são suficientes para ‘achatar’ a curva, dependem da mobilização das pessoas

Mas como se ‘achata’ essa curva de casos?

Em resumo, tentando minimizar o impacto do vírus.

É obviamente mais fácil falar do que fazer, mas não é impossível.

Governos precisam de um grande volume de recursos e de coordenação, ou seja, isolamentos e quarentenas organizados e dinheiro extra para gastos urgentes.

No caso da Itália, em 9 de março, o governo anunciou que as restrições implementadas na chamada “zona vermelha” no norte do país seriam estendidas ao país inteiro. “Não há mais tempo”, afirmou o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, em discurso televisionado.

“Os números estão mostrando um aumento significativo em infecções, pessoas em tratamento intensivo e mortes.”

Na China, restrições severas a viagens e circulação de pessoas foram enaltecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) depois que um de seus especialistas concluiu que essas medidas ajudaram a conter a disseminação do vírus.

“Muitas fontes de dados apontam para a mesma coisa: está caindo, e e está caindo por causa das ações que estão sendo tomadas”, afirmou Bruce Aylward, membro da diretoria da OMS, em entrevista a jornalistas na China.

A China, aliás, recentemente divulgou que a transmissão local caiu a zero fora da Província de Hubei, onde o vírus surgiu em dezembro e ocorreu a maioria dos casos do mundo até agora.

Uma das medidas mais eficazes adotadas ali, segundo especialistas, é ter feito uma busca ativa de pessoas doentes, com medições de temperatura em massa, e isolamento desses casos suspeitos do núcleo familiar, onde o vírus circulava com força.

No Brasil, o inverno e a época de gripe podem atrapalhar?

A estratégia de “achatar a curva” visa também a outros dois grandes objetivos: manter o surto sob controle até o desenvolvimento de uma vacina (algo que vai levar pelo menos mais um ano) e o fim do inverno no hemisfério norte, época que infecções respiratórias como a gripe se espalham mais facilmente.

Mas essa estratégia serviria ao Brasil, no hemisfério sul, onde o inverno se aproxima e poderia “encavalar” duas epidemias? Para especialistas, sim, graças a medidas de distanciamento social e uma imunização cruzada do próprio corpo que impediria surtos de dois vírus parecidos.

“Obviamente a gente pode ter problemas em relação ao timing da chegada do vírus ao Brasil, da diferença de sazonalidade no hemisfério, mas estratégias de restrição de aglomeração de pessoas são muito importantes, como mostra a epidemiologia tradicional”, afirmou Fernando Spilki, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia.

Confira nossa cobertura especial

Kleber Luz, infectologista da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, explica, no entanto, que “habitualmente não há uma epidemia de duas doenças similares ao mesmo tempo” e que seria muito improvável isso acontecer.

“Como essas doenças são muito parecidas, quando você tem uma doença infecciosa viral, você geralmente produz uma grande quantidade de Interferon (molécula produzida pelo sistema imunológico que tem propriedades antivirais, ao induzir um estado de resistência viral em células não infectadas e interferir na replicação de vírus e bactérias, por exemplo), o que te impede de adoecer nas próximas semanas”, afirma Luz.

Segundo ele, no inverno há uma maior cocirculação de vírus respiratórios, mas uma epidemia habitualmente está ligada a um único vírus. “As pessoas têm um vírus e fazem como uma imunidade cruzada contra outros vírus, por um período curto, um mês e meio, dois meses. Na prática, a gente não vê uma pessoa ter uma gripe atrás da outra.”

“Como uma pessoa não teria duas doenças dessas ao mesmo tempo, o que vai acontecer é que vai circular ou a influenza A ou o coronavírus. Como a maioria das pessoas não tem imunidade contra o coronavírus, a expectativa é que este circule, embora vá haver casos de gripe. Então, uma virose respiratória vai interferir negativamente sobre a outra, e deverá achatar o número de casos.”

Por outro lado, Spilki afirma que a semelhança dos sintomas desses vírus respiratórios é bastante preocupante porque “muitas pessoas vão acabar se direcionando ao sistema de saúde e é muito alta a chance de saturação tanto do atendimento ambulatorial quanto da internação”.

Qual é a capacidade do sistema de saúde do Brasil?

O Ministério da Saúde informou que estudos apontam que 90% dos casos do novo coronavírus apresentam sintomas leves e podem ser tratados nos postos de saúde ou em casa.

Mas, entre aqueles que são hospitalizados, o tempo de internação gira em torno de três semanas, o que gera um impacto sobre os sistemas de saúde, de acordo com a pasta, já que os leitos de unidades de tratamento intensivo (UTI) ficam ocupados por um longo tempo. Por isso, o governo vai buscar ampliar o número de leitos de UTI disponíveis e de verbas para o Sistema Único de Saúde (SUS).

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, pediu que sejam liberados R$ 5 bilhões de recursos para combater a pandemia e disse que o SUS, do qual dependem exclusivamente os quase 70% de brasileiros que não têm plano de saúde, não suportará a demanda criada pelo novo coronavírus.

Estima-se que pouco menos da metade dos cerca de 40 mil leitos de UTI do Brasil estejam na rede pública — ao todo, são 2 a cada 10 mil habitantes. Em coletiva de imprensa, o secretário-executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo, disse que 2.000 leitos de UTI serão direcionados para pacientes com covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus.

Direito de imagem Getty Images
Image caption Especialistas afirmam que ações individuais, como lavar bem as mãos, são cruciais para conter o avanço do coronavírus

Gabbardo também informou que o SUS deve mudar os critérios para o uso dos leitos destas unidades e explicou que pacientes terminais, por exemplo, não serão levados para este setor nos hospitais.

Eduardo Sprinz, chefe do serviço de infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, diz que a possível sobrecarga das UTIs já vem sendo discutida entre médicos e especialistas, por causa do que ocorreu durante a última pandemia, de gripe suína, em 2009.

“Naquela época, quase tivemos que aplicar um critério semelhante a este da Itália. Houve filas de espera por respiradores em hospitais, foi uma coisa muito dramática”, afirma Sprinz.

O infectologista explica que os estudos feitos até o momento apontam que esse novo vírus é até três vezes mais transmissível do que o vírus da gripe suína, o H1N1, o que pode fazer com que o número de brasileiros infectados agora seja superior.

“Dependendo de como a epidemia se desenvolver por aqui, podemos ter um risco de saturação do sistema de saúde. Estamos trabalhando para que não chegue a esse ponto, mas, se isso ocorrer, talvez chegue o momento em que seja necessário fazer uma ‘escolha de Sofia’.”

Os indivíduos também têm responsabilidade nisso tudo?

Sim, todos nós temos que assumir nossas responsabilidades, afirmam especialistas.

Como? Adotando medidas preventivas como lavagem frequente das mãos, evitar viagens e trabalhar remotamente.

Em um artigo publicado no dia 9 de março, uma equipe de pesquisadores analisou as medidas adotadas em diversos países contra o surto de coronavírus e identificaram que o comportamento individual responsável foi crucial para conter a disseminação da doença.

“A maneira como os indivíduos seguem as orientações públicas de como evitar a transmissão é tão importante quanto as medidas governamentais, ou até mais importante”, afirmam os especialistas.

Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!

Fonte: BBC