Mianmar: o obscuro império comercial que financia os militares do país

  • Joshua Cheetham
  • BBC News

soldados em Mianmar

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Críticos dizem que o império empresarial dos militares de Mianmar ajudou a impulsionar o golpe atual

No popular centro de paraquedismo de Yangon, a maior cidade de Mianmar, os visitantes podem experimentar como é a emoção de pular de um avião na segurança de um túnel de vento vertical.

Mas poucos dos que visitam a atração sabem que ela faz parte de um imenso império empresarial dirigido pelos militares e que faz parte do tecido social do país asiático.

Os críticos das Forças Armadas dizem que foi a renda vasta e secreta obtida com essa rede de negócios lucrativa e em expansão foi o que tornou possível o golpe no país.

Empresários civis comparam isso aos negócios da máfia na Sicília, no sul da Itália, enquanto ativistas denunciam que as reformas democráticas só serão possíveis quando “os militares voltarem ao quartel”.

Os conglomerados que financiam os militares

O Exército de Mianmar, o Tatmadaw, começou a se envolver nos negócios após o golpe de Ne Win em 1962, que inaugurou o período socialista do país.

Durante anos, foi uma exigência que os batalhões militares fossem autossuficientes, e eles foram encorajados a ter participações em negócios locais para financiar suas operações.

Embora essa prática tenha sido gradualmente eliminada, dois conglomerados liderados por militares foram estabelecidos na década de 1990, quando o governo começou a privatizar as indústrias estatais.

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Um centro de paraquedismo é um dos vários negócios administrados pelos militares de Mianmar

Ambas as organizações, a Corporação Econômica de Mianmar (CEM) e a Empresa Pública de Holdings Econômicas de Mianmar Limitada (EPHEML), desde então se tornaram uma fonte importante de riqueza para o Tatmadaw, com participações em negócios que vão desde bancos e mineração até tabaco e turismo. A EPHEML também opera o fundo de pensão militar.

Vários líderes militares e suas famílias também têm grandes participações comerciais e foram sujeitos a sanções no passado.

Aung Pyae Sone, filho do general e líder golpista Min Aung Hliang, possui várias empresas, incluindo um spa, e tem uma participação majoritária na operadora nacional de telecomunicações Mytel.

O escopo total dessas participações comerciais é difícil de quantificar. Mas especialistas dizem que a influência comercial dos militares é significativa, apesar das recentes reformas democráticas, e afirmam que o golpe pode ser em parte uma tentativa de proteger esses interesses financeiros.

‘Protegido de responsabilização’

O pouco que sabemos sobre o alcance financeiro dos militares só veio à tona nos últimos anos.

Um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2019, estimulado pela repressão de Mianmar às comunidades rohingya, concluiu que as receitas comerciais aumentaram a capacidade dos militares de cometer abusos contra direitos humanos com impunidade.

Por meio de uma rede de empresas pertencentes a conglomerados e afiliadas, a ONU disse que o Tatmadaw foi capaz de “se proteger da responsabilização e da supervisão”.

Detalhes sobre a estrutura e finanças do EPHEML também foram revelados em dois relatórios internos: um arquivado pelo conglomerado em janeiro de 2020 e o outro vazado pelos grupos ativistas Justiça por Mianmar e Anistia Internacional.

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O general Min Aung Hlaing é um dos principais acionistas do conglomerado EPHEML

Eles mostraram que o conglomerado é dirigido por altos escalões militares, incluindo vários líderes do golpe em curso. Cerca de um terço de todos os acionistas são militares, enquanto o restante são antigos e atuais funcionários do Tatmadaw.

O relatório divulgado disse que, entre 1990 e 2011, a EPHEML pagou a seus acionistas 108 bilhões de kyats em dividendos (US$ 16,6 bilhões, de acordo com as taxas de câmbio oficiais da época).

Também sugeriu que os militares usaram ações da EPHEML para recompensar a lealdade e punir o mau comportamento. Uma tabela lista 35 pessoas que perderam seus dividendos por motivos como deserção e prisão.

O EPHEML não comentou publicamente sobre o relatório vazado.

Pedidos de sanções

Na esteira do golpe, grupos de defesa emitiram novos apelos por sanções contra os militares e seu acesso ao sistema financeiro global. Muitos ativistas querem ver os conglomerados desmantelados também.

Em um comunicado à BBC, o Justiça por Mianmar acusou os militares de estarem em “um conflito ilegal de interesses”.

“A riqueza roubada pelos militares e seus negócios pertence ao povo de Mianmar e deve ser devolvida a eles”, acrescentaram.

Os Estados Unidos adicionaram os dois conglomerados a uma lista que veta relações de comércio e aplicaram novas sanções contra militares e figuras do governo, junto com três empresas de mineração.

Canadá, Nova Zelândia e Reino Unido também tomaram suas próprias medidas, embora nenhum deles tenha se concentrado diretamente nos conglomerados.

Os ativistas argumentam que as sanções historicamente fracas encorajaram o Tatmadaw a dar o golpe e a prosseguir com os supostos abusos de direitos humanos.

No entanto, especialistas disseram à BBC que há um grande apetite para aumentar as sanções — no momento certo.

“O mundo ainda está esperando para ver como isso vai se desenrolar”, disse George McLeod, diretor-gerente da Access Asia, uma empresa de gerenciamento de risco especializada na região. “Pelo que ouvi de pessoas de lá, a Noruega está tentando chegar a uma solução negociada.”

Ao mesmo tempo, há um ressentimento crescente entre alguns empresários locais sobre o poder dos conglomerados.

“Eles descrevem isso quase da mesma maneira que um empresário que opera na Sicília falaria sobre a máfia”, disse McLeod à BBC. “Você tem que fazer acordo com eles se entrar no radar deles. Mas você não quer isso.”

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O Tatmadaw afirma estar preparado para enfrentar as pressões internacionais

‘Eles querem ser um player internacional’

O Tatmadaw já começa a sentir a pressão dos investidores estrangeiros.

A empresa japonesa de bebidas Kirin encerrou dois negócios lucrativos com a EPHEML que a ajudaram a dominar o mercado de cerveja de Mianmar. O empresário de Cingapura Lim Kaling também cortou seu investimento em uma empresa de tabaco ligada ao conglomerado.

Enquanto isso, os manifestantes locais boicotam empresas com vínculos com o novo governo, incluindo joalherias e marcas de cigarro.

Pedidos de sanções internacionais não são universais, no entanto. China e Rússia rejeitaram os esforços de outros membros do Conselho de Segurança da ONU para condenar o Tatmadaw.

Especialistas concordam que, embora as sanções sejam uma peça importante do quebra-cabeça, elas devem funcionar em conjunto com a pressão legal e diplomática, além dos embargos em relação a armas.

O vice-chefe do Tatmadaw, Soe Win, disse à ONU que eles estão prontos para enfrentar a pressão internacional se necessário.

Sem uma ação multilateral, Mianmar poderia se tornar um estado pária mais uma vez, diz Peter Kucik, ex-assessor de sanções do Tesouro dos Estados Unidos.

“Este grupo de generais no poder agora é mais ou menos o mesmo grupo que estava no poder sob o regime do SPDC (uma junta militar que governou Mianmar de 1997 a 2011), e eles mostraram que estão perfeitamente confortáveis ​​vivendo em um país isolado”, disse ele à BBC.

No entanto, embora o país possa se apoiar no comércio de parceiros como a China, os empresários locais estão reticentes em relação a essa perspectiva, acrescenta Kucik.

“Eles querem negociar com empresas japonesas de primeira linha, querem negociar com empresas ocidentais e querem ser um player no cenário internacional da mesma forma que a Tailândia”, disse Kucik.

Aconteça o que acontecer a seguir, grupos de defesa dizem que puxar os cordões do caixa dos militares e reformar seus conglomerados será essencial para a reforma democrática.

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Fonte: BBC