Paris: uma visita ao Museu da Caça e da Natureza

A velha ideia corrente de civilização que se baseia no paradoxo Homem versus Natureza vem cobrando o seu preço. Basta olhar as vitrines de uma pâtisserie como a Ladurée com suas caixinhas de bombom como se fossem jóias e suas várias camadas de embalagem: papelão, papel alumínio, papel de seda, celofane. De caçador a gourmet, o ser humano segue produzindo mais lixo e mais guerras sangrentas em nome de interesses de nações e de um progresso épico que vai muito além do que seria razoável. E embora já existam tecnologias limpas que acenam para a manutenção da vida na Terra, há mais teorias do que práticas de preservação e as pulsões de vida e de morte seguem fazendo parte desse impasse chamado homo sapiens. Por isso tudo, não é exatamente contraditório visitar em Paris o Musée de la Chase et de la Nature. 

Em pleno Marais, bairro medieval repleto de lojinhas trendy e bares LGBTQI+, o Museu da Caça e da Natureza a princípio parece o oposto simétrico de Paris: animais selvagens empalhados, morte, floresta. Mas é de onde todos se nutrem, e que flerta com um tema caro aos franceses: a ecologia. Além disso, mais do que instrumento de alimentação e defesa, caçar era um verdadeiro esporte de fidalgos, com a sua ética, regras e objetos próprios, e ainda hoje uma prática que mantém um certo glamour nas muitas florestas preservadas da França. Quer dizer, o Museu da Caça e da Natureza não é só para quem tem curiosidade pela prática, mas para quem se interessa em mergulhar na investigação da nossa própria natureza ambígua e na história da civilização (e da barbárie), assim como temas transversais como a Idade Média, as guerras, o patriarcado, filmes de época, esportes sangrentos e até a culinária raiz.

O homem caucasiano que adentra a mata misteriosa para dominar, aprende a temer, respeitar, admirar e estudar a natureza, como mostram os inúmeros registros – de desenhos botânicos às pinturas à óleo de natureza morta – que estão expostos no museu. Muitas florestas ainda estão de pé no território francês, como a de Fontainebleau. No entorno de Paris e Versailles há um cinturão verde espetacular que mais parece de outra época. Quer dizer, o Museu da Caça coloca a Paris paraíso artificial em perspectiva com a sua opulenta vida selvagem.

No imaginário, ficamos entre uma cavalgada pela floresta de Madame Bovary em busca do terceiro amante, uma siesta ao ar fresco de um Van Gogh embevecido e já doente ou um episódio carniceiro de Game of Thrones (que o cinema do museu exibiu na pré-estréia da série). Também desperta em nós o cinéfilo ou o adolescente que curtia acampar. 

O museu foi criado a partir da coleção particular de um casal de mecenas aficcionado e se debruça sobre essa atividade politicamente incorreta. No fim, é um programa mais antropológico do que estético. A caça não só como fim e troféu de sobrevivência, mas como meio, ritual e aventura. Sediado em dois grandes hotéis particuliers, que não são hotéis como conhecemos, mas uma casa que pertenceu a aristocratas rurais, o museu às vezes parece um gabinete de curiosidades tipo freak show, como por exemplo minúsculas maquetes de caveiras nas posições do kama-sutra, caserna cenográfica e muita taxidermia. Pra quem gosta de detalhes, a memorabilia é extensa: tapeçarias, pinturas temáticas, retratos dos nobres “desportistas”, estudos de espécies, pólvora, selas, gaiolas, espingardas, facas, lunetas, espadas, armadilhas, medalhas, mapas, comedouros de prata gravada para os cães da realeza. A museografia é lúdica, com surpresas que surgem através de pequenos olhos mágicos, caixas e fundos falsos, inúmeras gavetas com toda sorte de utensílios e artefatos. Uma espingarda de prata gravada com arabescos e outra de madeira e madrepérolas mostram essa necessidade do ser humano de transcender o próprio ato da simples sobrevivência. Ou seria de mascarar ou glorificar a morte?

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Todas estas questões são mostradas e até debatidas nas programações do museu, em seminários, cinema e até em mostra de arte contemporânea. Na atual programação, chama a atenção um colóquio que vai acontecer em 2023 sobre Rosa Bonheur, pintora do século XIX que se especializou em retratar animais, principalmente vacas e cavalos, domésticos e selvagens, contrariando a temática floral, a única autorizada às mulheres de então. Bonheur, que faz parte da coleção permanente do Musée D’Orsay, foi a primeira a receber a consagração em vida porque pintava um tema considerado masculino melhor do que muitos homens, o que a levou a ser vista como uma artista de verdade para além das artes decorativas. E, aparte a coleção permanente, uma galeria de arte contemporânea que desdobra o mesmo tema até os limites do ready-made, aquele inventado por Marcel Duchamp e que alguns artistas ainda insistem em reeditar.

Enfim, o Museu da Caça e da Natureza é menos uma ode à “selvageria” e mais uma reflexão sobre a relação dialética homem/natureza e um outro lado da moeda da encantada floresta artificial chamada Paris. O homem continua apartado da (sua própria) natureza, mas segue usufruindo, explorando e em diálogo permanente com as florestas, seus usos e significados.

Musée de la Chase et de la Nature

Aberto de terça-feira a domingo das 11h às 18h (quarta-feira até 21h30)

62, rue des Archives

Ingressos: 10 euros

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Fonte: Viagem e Turismo