“Sofrimento de brasileiras imigrantes sem apoio é porta aberta para doenças emocionais”, diz psicóloga

A psicóloga Bárbara Andrade mostrou coragem de poucos ao dar um novo rumo à sua carreira. Essa brasiliense de 26 anos trocou um emprego confortável, numa multinacional de bebidas, por um projeto de escuta ativa e atendimento terapêutico e jurídico a mulheres brasileiras e nascidas em outras nações de língua portuguesa, que foram viver como imigrantes em outros países.

Bárbara Andrade auxilia mulheres brasileiras que vivem em outros paísesO trabalho é estruturado em três eixos: atendimento das pacientes em consultas pela internet, um podcast semanal de orientação jurídica e psicológica, o Ponto de Partida, e um fórum de reuniões online com advogadas e especialistas de outras áreas, para analisar situações e definir estratégias de atendimento multidisciplinar. Os dois primeiros eixos estão a pleno vapor. O terceiro, o fórum, começará a funcionar brevemente. Talento e valentia internacionais. Acompanhe:

Nesta conversa com o R7 ENTREVISTA, Bárbara explica as fases do trabalho, enumera os principais problemas enfrentados por mulheres no exterior e dá detalhes sobre as realidades encontradas por uma de suas avós, até hoje imigrante nos Estados Unidos, e pelos pais e uma irmã, radicados em Portugal.

Como é o trabalho de assistir mulheres imigrantes brasileiras e estrangeiras de língua portuguesa, que deixaram o Brasil e seus países para viver em outros lugares do mundo sozinhas, acompanhadas e, em muitos casos, com filhos?
Bárbara Andrade – O projeto envolve três pilares: atendimento em consultas de Psicologia pela internet, agora aprovado pelo Conselho Federal de Psicologia em plataformas específicas, o podcast Ponto de Partida e um fórum de reuniões online com advogadas e, eventualmente, especialistas de outras áreas, para analisar situações e definir estratégias de abordagens multidisciplinares desses casos. O primeiro pilar eu realizo sozinha, a partir do meu consultório em Brasília, onde nasci e vivo.

E o segundo pilar?
É o podcast Ponto de Partida, um ambiente para refúgio, conversa, apresentação e discussão de problemas e soluções para mulheres que são imigrantes, pensam em mudar para o exterior ou pretendem fazer as malas e retornar ao Brasil ou ao país de origem. Damos suporte a radicadas nos Estados Unidos, Malásia, países europeus… O podcast inclui assessoria jurídica e é apresentado por mim e pela advogada Nathalia Allaion, uma brasileira imigrante: vive na França, casada com um português de cidadania francesa. Entra no ar toda quarta-feira, às dez da manhã, no horário de Brasília, nas principais plataformas de áudio.

O terceiro…
O fórum. Está em início de implantação. Será executado por mim, pela psicóloga Milena Lhano, brasileira radicada na Holanda, e pela advogada especializada em Direito Internacional Janaína Albuquerque, também brasileira, hoje estabelecida em Portugal.

Bárbara alerta para as dificuldades que mulheres passam no exteriorO grupo tem experiência profissional e pessoal na causa.
Exatamente. Um detalhe: não vetamos atendimento a homens sob qualquer pretexto, mas, pelo formato assumido pelo projeto, as carências femininas e também pelo fato de sermos todas mulheres, a quase totalidade das ações se encaminha naturalmente para o público feminino. Viver em outro país não é fácil, sobretudo para quem deixa o seu em busca de emprego e melhoria de vida. Dinheiro apertado, necessidade de economizar para atender parentes e estruturar o próprio futuro na possível volta, barreiras culturais e linguísticas… Quando são mulheres, os assédios e preconceitos se juntam ao racismo, à xenofobia e, não raro, às violências sociais e até sexuais. São problemas em relacionamentos afetivos, dificuldades na carreira, jornada de trabalho e distância da família. Fragilizadas, essas imigrantes sofrem de ansiedade, depressão e várias outras doenças emocionais, e muitas vezes esses problemas chegam aos filhos.

Quais são as principais queixas dessas mulheres?
No atendimento psicológico, procuro identificar até que ponto as demandas e queixas apresentadas pelas pessoas se referem à imigração e a pontos comuns do ser humano, para encaminhar a melhor estratégia de terapia. Não posso localizar nem dar nomes porque grande parte desses casos envolve processos em sigilo de justiça no Brasil ou fora. Mas há casos de sexualização exagerada das mulheres. Aquela coisa preconceituosa de achar que todas as brasileiras estão na Europa e em países ricos para roubar ou ser amantes dos homens, solteiros ou não, e arrumar um casamento para facilitar a vida. Em Portugal essa visão não é rara. Temos relatos de mulheres brasileiras bem casadas com brasileiros, que chegaram na Europa acompanhadas desses maridos, reclamando desse tipo de insinuação e, às vezes, de afirmação direta. Há também, em grande parte, questões relacionadas às condições de trabalho, abrigo e vida. Casos em que recebem promessas de trabalho mentirosas e, ao chegarem ou se deslocarem para assumir o trabalho, se deparam com condições insalubres e desumanas de trabalho e estadia.

Podcast é uma das ferramentas da psicólogo no auxílio a brasileirasExistem também muitos problemas de relacionamento afetivo, não?
Esse é um grupo importantíssimo: mulheres que se mudam para o país do companheiro, ou entram em um relacionamento com um local após imigrar, e, em caso de término do relacionamento, são completamente abandonadas em termos sociais, financeiros, jurídicos e psicológicos. Muitas vezes com filhos, proibidos se serem levados para o Brasil pela mãe. Isso agrava profundamente a situação. Entre um cidadão local e uma estrangeira muitas vezes ilegal, as autoridades quase sempre dão ouvidos e apoio a quem nasceu no país, independentemente de ter ou não razão.

Você atende mulheres presas e forçadas a se prostituir?
Ainda não. Até onde me foi revelado, as trabalhadoras do sexo atendidas estão na atividade por decisão individual, sem pressões dessa natureza. Mas sabemos que esses casos são mais comuns do que imaginamos. É um problema sério, que quase sempre envolve confisco de documentos, exploração financeira, péssimas condições de abrigo, perda da liberdade de ir e vir, cárcere privado, violência física e sexual, entre outros absurdos. Alguns casos terminam em assassinato.

O que gera essas situações?
Uma combinação cruel de fatos. Praticamente todos os casos de mudança para o exterior de mulheres e homens, sobretudo de quem parte de países com carências, como o Brasil, são motivados por busca de melhores condições de vida ou tentativa de viabilizar um relacionamento afetivo com alguém de fora. Mesmo pessoas que buscam cursos no exterior, com bolsas e situações mais confortáveis, estão no fundo em busca de melhorias profissionais e financeiras. Se você retirar esse contingente, todos os outros viram imigrantes para elevar imediatamente o padrão de vida. Realizam, ao menos no início, todos aqueles serviços que os locais não querem mais fazer nos países ricos. Limpeza de casas e quintais, alguns tipos de transporte, delivery, cuidado de crianças e idosos, essas atividades.

A imigração responde a essa lógica em praticamente todos os seus movimentos.
Exato. Foi e é assim entre cidadãos de países colonizados por europeus indo para a Europa e mesmo internamente no continente, dos países mais pobres para os mais ricos. Foi e é assim também nos Estados Unidos, país feito por imigrantes que, hoje, paralisaria sem eles. É o dilema americano, que fica entre facilitar e dificultar a entrada e a vida dos imigrantes. Tentam segurar, mas não vivem mais sem eles e sabem disso. E mesmo no movimento interno no Brasil a lógica oferecida é essa, com os nordestinos fazendo o serviço que a classe média se recusa a realizar no Sul, Sudeste e em Brasília, por exemplo.

E qual é a combinação?
Na quase totalidade dos casos, esses imigrantes desembarcam nos países ricos como ilegais, sem as garantias legais e sociais dadas ao cidadão local. Além disso, muitas vezes são analisados e julgados no cotidiano pela questão étnica. A fórmula do preconceito está dada. Como alguém, sobretudo uma mulher, vai reivindicar algo ou enfrentar locais em busca de seus direitos com tanta fragilidade? É neste ponto que entra nosso trabalho.

Você tem familiares em outros países?
Sim. De certa forma, a exemplo do grupo, também possuo experiência pessoal na causa. Uma de minhas avós foi para os Estados Unidos como ilegal. Trabalhou com limpeza e vive lá até hoje. Sofreu preconceito, essas coisas. Meus pais e uma irmã vivem em Portugal, distantes 40 minutos de Lisboa, a capital. Minha mãe está há mais tempo, tem autorização de residência. Meu pai chegou no final de 2001. Trabalha numa fábrica. Minha irmã é estudante. De vez em quando comentam coisas do tipo que viveram ou souberam por outros imigrantes.

Como decidiu entrar nessa área?
A experiência com meus familiares foi decisiva. O fato de ser brasiliense também influenciou. Como Brasília é uma cidade nova, muita gente aqui é estrangeira entre aspas. Sou formada em Psicologia no IESB, em Brasília, e faço pós-graduação em Saúde Mental e Desenvolvimento Humano pela PUC-RS. Tenho emprego desde os 16 anos. Trabalhava como psicóloga em uma unidade da Coca-Cola em Brasília quando passei a atender pacientes à noite, pela internet. Comecei a assistência para mulheres imigrantes com textos, lives e informações no meu Instagram, o @escutababi. A coisa cresceu e chegou o momento em que tive de optar. Deixei o emprego e passei a viver apenas de consultas.

Lançou um livro?
Em parte. Sou uma das 31 coautoras do livro Mulheres Que Transformam Mulheres – Seja Protagonista da Sua Vida, que acaba de ser lançado pela Literare Books. No meu capítulo, destaco a potência da palavra e da escrita no reforço da identidade e posicionamento femininos.

Pretende um dia ser imigrante?
Sim, mas evidentemente sem enfrentar todos esses preconceitos e dificuldades que mulheres passam e nós testemunhamos e combatemos.

// Fonte: Portal R7.

Fonte: Brazilian Press