[resumo] Ensaísta passeia pela obra e biografia do autor de “A Metamorfose” enquanto perfaz roteiro turístico kafkiano em Praga, a cidade do escritor, judeu de família falante de alemão, que teria recomendado a destruição de seus escritos literários.
No verão de 1911, enquanto percorriam lagos no sul da Europa, Franz Kafka, 28 anos, e seu melhor amigo, Max Brod, tiveram uma ideia que pensaram que poderia lhes render milhões de coroas austro-húngaras: guias de viagem.
A ideia não foi além do estágio de um plano de negócios, mas os dois a encararam com seriedade. Ela “deveria fazer de nós milionários”, disse Brod —citado na página 19 de “Kafka’s Last Trial” (o último processo de Kafka), de Benjamin Balint. Além de darem dicas de viagem, esses guias protegeriam as pessoas contra armadilhas para atrair turistas —segundo afirma Reiner Stach em seu livro “Kafka: The Early Years” (Kafka: os anos de juventude), págs. 447-8.
Hoje o próprio Kafka é uma armadilha para turistas. Estou parado no meio da praça da Cidade Velha de Praga —uma seção de um “pequeno círculo” dentro do qual, disse Kafka, sua vida inteira estava contida. Uma mulher passa ao lado segurando uma espécie de pirulito de madeira com o rosto de Franz gravado em cima; ela segue um grupo de americanos com máquinas fotográficas enormes penduradas no pescoço.
Kafka disse a Brod que, com a exceção de seis de seus contos, todos os seus papéis e manuscritos deveriam ser “queimados sem serem lidos, e até a última página”. Brod, como sabemos, o desobedeceu.
Quer tenha o escritor feito ou não o pedido a sério —e muitos pensam que não foi o caso—, aqui estamos. Kafka está muito longe de não ter sido lido. É uma manhã de calor escaldante, e estou pronto para correr atrás de seu fantasma. Tenho uma longa lista de destinos ligados a Kafka inscritos em meu Evernote e assinalados no meu Google Maps. Começo a andar.
Seja o que for que Praga tenha convertido em atração turística, não foi o exemplo que Kafka criou de como viver uma vida de contentamento. Suas cartas de amor — que, em termos de total de palavras, ultrapassam de longe suas obras de ficção publicadas— exibem uma autoaversão teatral, opaca demais na maior parte do tempo para alcançar o nível de coerção emocional.
Kafka se queixava de sua família, dizendo que era opressora e cruel, mas viveu com seus pais sem pagar aluguel até bem depois dos 30 anos e deixava sua mãe lhe preparar o jantar todas as noites. Ele sofria de insônia crônica e era atormentado por dores de cabeça constantes e estômago fraco, mas se dizia hipocondríaco “obcecado por si mesmo”. Detestava seu corpo e se imaginava constantemente como algo sub-humano. Em seu diário, parece estar perpetuamente intimidado, sufocado pela vida e obcecado com a natureza de sua angústia existencial.
É por tudo isso que Kafka cumpre o papel de uma espécie de anti-Hemingway na imaginação literária geral: hipersensível, frágil, altamente cerebral mas fisicamente fraco —um vidente cuja sintonia com a vida fazia dele uma espécie de nervo à flor da pele avançando trôpego em um mundo cruel.
Milan Kundera, o segundo escritor mais célebre de Praga, lamentou o surgimento de um culto à personalidade que batizou de “kafkologia” e que, segundo ele, “se deleita em discutir o martírio da impotência de Kafka”. “Assim, há muito tempo já Kafka virou o santo padroeiro dos neuróticos, dos deprimidos, dos anoréxicos, dos enfraquecidos”, definiu.
Encontro a Associação Franz Kafka. É um lugar estreito, abafado e vazio, a não ser por seus dois funcionários, que evitam trocar olhares diretos enquanto discutem o significado de “fantasma” em romanche e alemão. Se isso é flerte, é um flerte um tanto gelado. Mas eles estão absortos, tanto que não fazem nenhum esforço para oferecer aos visitantes toda a gama de marcadores de livros, ímãs de geladeira, cartões -postais e bustos em miniatura que a lojinha contém. As paredes do estabelecimento formam um mar de olhos melancólicos de Kafka.
Continuamos a andar. Os olhos estão por toda parte em Praga. Justamente quando parei de pensar no rosto de Franz, lá está ele outra vez, ampliado para proporções pixeladas no toldo de um café. Não há como fugir do fato de que Kafka teria achado essa ideia —um artista cujo nome sonoro e olhar penetrante o promovem melhor que sua própria arte— digna de um conto. Uma última piada de humor negro.
Os olhos de Kafka são fartamente mitologizados na hagiografia do escritor. Ninguém consegue chegar a um acordo quanto à sua cor. Aqui em Praga, eles são da cor que combina melhor com a paleta do nome de marca de cada estabelecimento.
Com quatro metros de altura e feita de bronze sólido, a estátua de Kafka é um terno vazio em pé com um homem menor sentado sobre seus ombros. As pessoas fazem fila e se revezam para ser fotografadas diante dela, geralmente sorrindo com uma naturalidade fingida da qual o próprio Kafka achava uma agonia tentar se dotar. Atrás da estátua está uma das sinagogas de Praga, erguida em um sítio de adoração judaica que remonta a 800 anos.
Como diz Benjamin Balint em seu “Kafka’s Last Trial” (págs. 60-61), o escritor fazia parte de “uma minoria judaica dentro de uma minoria de língua alemã dentro de uma minoria tcheca dentro de um Império Austro-Húngaro heterogêneo que estava sendo dilacerado pela força centrífuga de nacionalismos rivais”.
Nas cartas que trocou com Felice Bauer, sua primeira quase-esposa, ela corrige o alemão dele. Nas cartas trocadas com Milena Jesenska, uma amante posterior, esta lhe ensina algumas coisas em tcheco.
Kafka morreu em 1924, mas suas três irmãs pereceram nas câmaras de gás nazistas.
Aqui, em 2019, os turistas nos fazem esquecer os horrores da história. Qual é a alternativa? Minha mulher e eu vamos almoçar. O único lugar onde já senti menos boa vontade vinda de garçons é Moscou. Não os culpo. De nosso café na esquina, ainda podemos enxergar a estátua de Kafka, até a vista ser obscurecida por duas “beer bikes” que passam pela frente, com alguns compatriotas meus sem camisa berrando uma canção de futebol.
No caminho de volta ao Airbnb, passamos por um busto de Rainer Maria Rilke, outro escritor nascido em Praga. Passa por minha cabeça que um pouco do lirismo esperançoso de Rilke poderia ter feito bem a Kafka. Franz gostava de nadar, mas —em suas próprias palavras— era “fisicamente inativo, eternamente preocupado consigo mesmo”. Todo o infortúnio de sua vida decorria “do feitiço maligno de escrever cartas”, ele disse a uma de suas amantes —em uma carta.
Kafka era brutalmente sensível ao barulho; só conseguia dormir com silêncio absoluto. Ele se dava a grande trabalho para mandar vir tampões de ouvido de cera de Berlim. Praga é uma cidade barulhenta à noite e, após um dia longo passado caçando fantasmas, eu também aprecio o silêncio. Tenho a vantagem de contar com tampões de ouvido feitos de silicone, substância que só foi inventada mais ou menos na época em que Kafka morreu. Protegido pelo silêncio artificial, leio sobre o investimento que Franz fez em uma fábrica de amianto —outra piada de humor negro—, até não conseguir mais conservar os olhos abertos.
Franz Kafka retratou a humanidade moderna como impotente, sendo arrastada a contragosto por correntes de influência que ela não controla nem compreende. Basta visitar por vários dias seguidos atrações turísticas seguidas ligadas a ele para que tudo comece a parecer um pouco, ahn, kafkiano.
Uma cabeça maciça de Kafka feita de camadas de cromo reluzente que se rearranjam observa os turistas filmando vídeos que eles nunca voltarão a assistir. Outro motivo que reaparece sempre na obra de Kafka é o de pessoas que são punidas por razões que não entendem. Na trilha de Kafka, todos parecem estar com calor e aflitos, sem ter onde se sentar ou tomar um copo d’água. Eu gravo um vídeo ao qual não assisti desde então. E continuo a andar.
Kafka escreveu que “só existe um vício cardinal: a impaciência”. Sou consumido pelo vício cardinal enquanto percorremos lentamente a primeira sala do museu Kafka.
As imagens de vídeo em preto e branco de Praga um século atrás são realmente sombrias. Franz tinha uma caligrafia que fazia jus ao adjetivo “emaranhado”. Tento enxergar os trechos riscados como alguma espécie de vislumbre do além. As passagens de “A Metamorfose” impressas nas paredes do museu vêm de uma tradução diferente daquela que eu li. De repente, meu exílio linguístico do alemão, a língua original em que Kafka escreveu, me parece um abismo existencial do tipo que sempre provoca vertigens nos narradores de Kafka.
Depois do museu, minha mulher e eu continuamos a fracassar em nossos esforços para escapar da trilha dos turistas. Entramos num restaurante onde uma garçonete com ar mal-humorado nos olha uma vez só e já nos entrega cardápios escritos em inglês.
As obras de Kafka estão cheias de personagens que não comem o suficiente ou passam fome até morrer. O próprio Kafka era um vegetariano cheio de exigências, além de ter sido devoto de um modismo pseudocientífico chamado “fletcherização”, que requer que as pessoas mastiguem cada bocado de alimento cem vezes.
Eu não sou limitado por nenhum desses obstáculos, tanto que devoro rapidamente várias fatias espessas de carne de porco, enormes bolinhos de massa e montanhas de repolho, tudo nadando num molho divino.
Em resposta à descrição feita por um amigo em 1902 de sua romaria à Casa de Goethe, em Weimar, Kafka (dando mostras de alguma insensibilidade) respondeu que romarias como essas eram uma miragem: “Nunca temos acesso ao que havia de mais sagrado em outra pessoa”, ele escreveu”, novamente segundo “Kafka’s Last Trial” (pág. 157.).
Mesmo assim, dez anos mais tarde Kafka faria sua própria peregrinação. Ele percorreu a casa e encontrou poucos traços de Johann Wolfgang von Goethe, observando que a faia que havia escurecido a sala de estudos continuara a crescer, inconsciente, desde a morte do grande escritor. Kafka ficou mais interessado pela filha do zelador, por quem nutriu uma obsessão passageira.
Sua busca infrutífera ecoa a minha. Posso ser esnobe em relação a todos esses turistas, mas o que eu faço também é um turismo e, diferentemente do deles, o meu é de uma indulgência complexa, multifacetada e nem sequer tenho uma ideia do que seria o sucesso.
Vivo permanentemente desorientado. Não há uma autoridade que possa me dizer se consegui. O tempo está se esgotando. Você adivinhou tudo. A julgar pelos diários de Kafka, ele sempre se sentia ineludivelmente só. Essa carência cósmica, aquela que assombra toda sua ficção. Estas filas teriam ajudado? E se eu ligasse todos esses pontinhos?
Kafka é um autor do inconsciente. Sua obra é única na literatura pelo fato de ser privada de marcadores de identidade —nenhum de seus personagens ou cidades tem nome— e esse vazio faz com que seus contos pareçam pequenas missivas negras vindas do underground.
Quando funciona, a escrita de Kafka se traduz em pequenos feixes de sentimento mudo que ficam registrados com memórias emprestadas de outros, com a sensação lateral de alucinação.
Surpreendentemente para aqueles que chegam a seus livros com a ideia vaga de Kafka como mestre do obscuro, sua escrita é meticulosa, quase técnica. Ela nos toca em seus momentos mais absurdos, mas também mais lúcidos.
Como condiz a um autor para quem o ato “doce e maravilhoso” de escrever é “a recompensa por servir ao diabo”, Kafka escreveu uma espécie de horror literário. Seu medo é líquido e borbulha em arranjos trêmulos, em quadros psíquicos frágeis. E o horror é sempre e inexoravelmente interno.
Nos textos de Kafka, os ingredientes fundamentais da consciência humana são os dilemas que não conseguimos colocar em palavras, as ansiedades que não sabemos como confessar. Seus narradores estão entre os mais solitários da literatura. São pessoas com tendência crônica a refletir mais do que seria necessário ou recomendável, e esse pensar excessivo, mais e mais meticuloso e verborrágico, os afasta mais e mais de qualquer resolução.
É essa a realidade kafkiana: o pensar preciso e detalhista demais que se exaure sem ter realizado nada. O fracasso final de imitar da mente, em seu encontro com o mundo externo. Os personagens de Kafka vivem ficando sem tempo para se explicarem a outros, ou precisariam de tanto tempo para tão somente começarem a se explicar que seria absurdo além dos limites da atenção humana ou da etiqueta que rege as discussões. A fenomenologia interpessoal de cada narrador é uma espécie de equação fugitiva que logo se torna complexa demais para jamais poder ser dissecada com a razão.
E o que acontece no macrocosmo se reflete no microcosmo: o medo macro que percorre a obra de Kafka é a sensação que vai lhe acometer se você passar tempo demais observando com olhar cínico demais os turistas perambulando por Praga. Por quê? Tantas fotos sendo feitas. Tantas pessoas esperando por tantas linguiças. Por quê?
As motivações são um mistério absoluto na obra de Kafka. As pessoas nunca recebem o que merecem. Em “O Processo”, Josef K. vive tentando encarar os procedimentos com uma racionalidade cuidadosa, mas sua vida o tempo todo se transforma em cinzas nas suas mãos. Os contos de Kafka possuem o determinismo brilhante dos sonhos. É tudo um grande exercício de dar socos debaixo d’água.
Diz-se com frequência que os escritos de Kafka têm o clima de um pesadelo, mas na realidade não há neles o exagero ou o clima de ameaça lúgubre de um pesadelo. Há apenas uma enorme opacidade. A ficção de Kafka manifesta a dor especial —uma dor endêmica em tipos de melancolia clínica e perturbadora— que sentimos quando aplicamos à realidade todos nossos poderes de razão e análise, mas constatamos que ela não está em conformidade, que ela não é coerente.
Talvez seja possível identificar uma espécie de humor na obra de Kafka —apesar de toda a angústia existencial presente em seus diários e cartas, o escritor (e seus ouvintes) costumavam gargalhar durante suas leituras—, mas, de outro modo, só se consegue encontrar consolo em sua clareza estranha.
E é uma espécie de consolo, sim. Toda grande literatura é comunhão. Em seu íntimo, a vida é solitária. Estamos isolados em nossa própria cabeça, sem conseguir sair dela. Kafka sabia disso melhor que ninguém. Aos 20 anos, escreveu a um amigo: “Quando você está diante de mim e olha para mim, o que sabe das tristezas que estão em mim, e o que eu sei das suas?”. E, mais tarde: “Raramente, muito raramente, atravessei esta fronteira entre a solidão e a comunhão com outros”.
Mas a literatura pode nos oferecer pequenos vislumbres de outra coisa: a sensação aturdida de que pequenos relâmpagos podem ser espelhados em nossos globos particulares, estranhas correntes de percepção e sentimento agitadas por sinais de outro.
Todos os que gostam de escrever são atraídos por esses vislumbres de evidências, transmitidas por alfabetos, de que também outra pessoa já conheceu aquele jogo particular de sombras que se projeta sobre aquela superfície particular da mente. Os escritos de Kafka o fazem com um abraço frio, mas não deixam de encerrar um consolo: forças e energias até então subterrâneas, de repente, ficam afiadas o suficiente para se alojarem como lascas na estrutura privada de seu ser. “Uma gaiola partiu em busca de um pássaro”, diz um dos aforismos mais célebres de Kafka. No que eles têm de melhor, os escritos de Kafka, como todos os escritos, são exatamente isso: o pássaro.
Em vez de perambular por mais lugares adornados com os olhos tristonhos de Franz, eu me sento à sombra compassiva e leio minha biografia de Kafka. Descubro que perto do final da vida, Kafka virou (nas palavras de sua amante final) um “bebedor apaixonado” de cerveja. Por quê? Porque quando era garoto, ele e seu pai iam à piscina pública e depois tomavam cerveja.
Em junho de 1924 Kafka escreveu uma carta a seus pais. Embora já soubesse que seu corpo estava entregando os pontos, convocou um otimismo que, para um homem de seu temperamento, era uma espécie de heroísmo. Sugeriu em sua carta que ele e seus pais passassem alguns dias juntos no campo:
“Eu me lembro de que, no passado, quando fazia calor, tomávamos cerveja juntos com frequência, naquele tempo distante em que Papai me levava à piscina pública.” Foi a última carta que Kafka enviou a seus pais. Ele morreu no dia seguinte.
De repente me sinto culpado pela caneca de cerveja que estou tomando sem pensar. Se pudesse, eu a daria a Franz para que a tomasse com seu pai.
Quando seu tempo estava se esgotando, esse mestre do inconsciente literário ainda procurava a mesma coisa pela qual todos ansiamos: uma ponte para atravessar a fronteira. Uma visão de nós mesmos que seja um pouco mais porosa nas bordas. Ansiamos por isso na literatura porque ansiamos por isso na vida, porque a gaiola aceita tantos pássaros quantos couberem nela. Quando nada mais serve, a memória entra em ação. Franz, ao que parece, estava caçando seu próprio fantasma cem anos antes de eu chegar.
A conclusão de meu relatório para uma academia: de uma romaria literária, só podemos esperar as revelações mais superficiais possíveis. Qualquer coisa que permanece, que seja real, sobrevive apenas como essa coisa densa e etérea que é a linguagem.
Apesar de isso ser o que havia planejado para minha última tarde, resolvo não chamar um Uber para ir ao túmulo de Kafka. O que ainda resta ali? Ossos. Talvez um crânio com a boca aberta em uma careta de incompreensão aturdida, perfeitamente kafkiana. No outono de 1924, o quilograma e pouco de tecido cerebral de Franz, fonte do pontilhismo psíquico que moveu suas histórias impossíveis, já teria apodrecido e desaparecido. Qualquer coisa que permanece vive em um lugar, e apenas em um: na página. Não —naquele limbo breve criado quando a página encontra outra mente. Chega de perambular, decido. Nada de túmulos.
Na última tarde antes de a Easyjet nos catapultar para fora da cidade de Kafka, minha mulher e eu subimos até o alto do castelo de Vyšehrad e assistimos ao sol se derretendo no rio Vltava. Isso com certeza é algo sobre o qual Franz teria passeado com seus olhos melancólicos. Talvez tenhamos algo compartilhado aqui —a clareza do natural, impossível de ofender com interpretações.
Vista aqui do alto, Praga é silenciosa e quase insuportavelmente bela. Há “muita esperança, uma quantidade infinita de esperança, mas não para nós”, disse Franz. Mas hoje a sensação é de esperança: com meu braço em volta da mulher que amo e a grande bola de fogo que nos dá vida tingindo a água de laranja. Kafka gargalhando nas leituras de seus escritos —lembre-se disso.
Descemos novamente do castelo. A realidade é opaca, há sofrimento pela frente, mas por enquanto temos cerveja sem fim, uma cama quente e a simples conexão. Como todo outro turista, afinal. “Na disputa entre você mesmo e o mundo”, escreveu Kafka, “segure mundo pelo casaco”.
É um carnaval sombrio, mas é preciso dar forma ao medo se quisermos lutar contra ele. O gênio de Kafka: aqueles bocados de narrativa que petrificam você, que o seguem e o atormentam por motivos que você não consegue descrever.
Em “O Processo”, há um motivo recorrente de pessoas que observam pessoas a partir de janelas. É outra coisa de Kafka da qual não consigo me livrar. Tem isso de as outras pessoas sempre estarem a uma distância justamente visível, estarem prestes a fechar as cortinas para que não as vejamos. Um esgotamento do tempo para que nos expliquemos, um nunca conseguirmos pôr a mão nos ombros de nossos fantasmas por mais do que um momento curto. No final do romance, quando Josef K. aguarda seu julgamento final, lemos:
“Seu olhar incidiu sobre o último andar da casa situada no limite da pedreira. Como uma luz que tremula, as folhas de uma janela abriram-se ali de par em par, uma pessoa que a distância e a altura tornavam fraca e fina inclinou-se de um golpe para a frente e esticou os braços mais para a frente ainda. Quem era? Um amigo? Uma pessoa de bem? Alguém que participava? Alguém que queria ajudar? Era apenas um?
Eram todos? Havia ainda possibilidade de ajuda? Existiam objeções que tinham sido esquecidas? Sem dúvida, estas existiam. A lógica, na verdade, é inabalável, mas ela não resiste a uma pessoa que quer viver. Onde estava o juiz que ele nunca tinha visto? Onde estava o alto tribunal ao qual ele nunca havia chegado? Ergueu as mãos e esticou todos os dedos.”
M.M. Owen é escritor e doutor em literatura pela Universidade de Columbia
Tradução de Clara Allain (trecho de “O Processo” por Modesto Carone).
Fonte: Folha de S.Paulo