Peruano Mil, dos donos do premiado Central, só cozinha com ingredientes do ecossistema de altura

Das bordas do restaurante peruano Mil, no Vale Sagrado andino, avista-se um parque arqueológico singular, à semelhança de um coliseu. Moray é um complexo construído pelas civilizações pré-inca, nas cercanias de Cusco, a 3.500 metros de altitude.

O espaço se consolidou como um antigo centro de experimentação agrícola em função de sua amplitude térmica, em terraços circulares, e serve de inspiração ao Mil, liderado pelo casal de chefs reconhecido mundialmente, Pía Léon e Virgilio Martínez.

Eles também estão à frente, junto da médica Malena Martínez, do Central —número um da América Latina e segundo melhor do mundo pelo ranking do 50 Best Restaurants— e do Kjolle.

No Mil, está em construção uma cozinha de altura, ultralocal. Seus pratos fazem uso de ervas, tubérculos e carnes somente próprios da região.

Com isso, a cada prato e a cada bebida o restaurante escava uma história ancestral dos ingredientes e de suas respectivas relações com antigas comunidades vizinhas —a equipe convive com elas e estabelece uma relação participativa, mutuamente benéfica.

A ideia de interpretar o passado no presente e, a um só tempo, conceber uma visão de futuro, sobretudo acerca das comunidades locais envolvidas no projeto, está enraizada no Mil.

Trata-se da primeira base regional fora de Lima da Mater, centro nervoso de todos os restaurantes de Pía e Virgilio. O local funciona como um instituto de pesquisa interdisciplinar, no qual convivem biólogos, agrônomos, neurocientistas, linguistas, cozinheiros, e que cataloga espécies botânicas provenientes das zonas de vida do Peru, na tentativa de mapear a grandeza do país.

O próprio Mil, um lugar único no mundo, afastado de polos urbanos, funciona como um centro de investigação, interpretação e desenvolvimento.

“É um projeto que começou com muitas ilusões e medo. Não sabíamos o que íamos encontrar”, diz Pía, sobre a empreitada que a colocou em contato com ingredientes desconhecidos e com a riqueza da biodiversidade andina.

Na cozinha, todos os insumos pertencem ao ecossistema de altura e são descobertos a partir da relação com as comunidades locais –e da sabedoria de seus antigos usos. A inovação, paradoxalmente, nasce relacionada à terra, à agricultura e às origens.

No terreno do restaurante, cuja arquitetura faz com que a casa se misture à natureza, são cultivados alguns produtos orgânicos, como quinoas, ervas e as batatas, que ficam expostas ao sol para concentrar os açúcares.

O solo calcário é de manejo complexo —é difícil a absorção de nutrientes, e a água, por outro lado, é sugada muito rapidamente.

“Aqui, fazemos duas coisas muito importantes: uma é introduzir produtos que não são da área, e testar o que cresce. A outra é reintroduzir produtos que se perderam ao longo do tempo”, explica Maria Fernanda Viviano, responsável pela imersão botânica feita com turistas pela chácara.

São plantios feitos em conjunto com as comunidades locais, que detêm o conhecimento, dos quais as colheitas são divididas meio a meio.

“Tentamos replicar esse consumo nas comunidades para que elas possam melhorar a alimentação”, diz o agrônomo do Mil, Cristian Granda.

A tendência é optarem por variedades não nativas, enxertadas em laboratório, porque produzem mais e são maiores. Com o dinheiro da venda, é comum a troca por comida ultraprocessada.

Manuel Contreras, filho e neto de botânicos e responsável por todos os experimentos líquidos de Mil, acredita que o conhecimento ancestral, quando levado ao laboratório, é atestado.

Com respeito a esse repertório, ele faz uma alquimia no bar. São drinques fermentados, destilados, infusionados, que carregam folhas, ervas, flores silvestres e raízes, que lhes dão uma variedade sensorial imensa.

Um mesmo ingrediente pode ser interpretado de outra maneira em um prato. São receitas como as diferentes batatas, de cores e de texturas alucinantes —púrpuras, rosadas, amareladas— servidas em louças artesanais, ou em pedras esculpidas a serem compartilhadas ao centro da mesa, como uma experiência comunitária.

“Há muitos competentes ao redor de uma experiência em Mil, testes em campo e nas nossas relações. Todos os dias nos desafiamos a olhar atentamente ao nosso território”, diz Malena Martínez.

“Obviamente o Peru tem muitos destinos turísticos, como Machu Pichu e centros arqueológicos, mas a gastronomia é muito forte”, diz Virgilio Martínez. “É a nossa maior forma de nos relacionar com o turista, é a nossa maior expressão cultural.”

A jornalista viajou a convite do restaurante Kjolle.

Fonte: Folha de S.Paulo

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