“Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa.
Mesmo alguém com moderada paixão com literatura talvez tenha, às folhas tantas de uma de suas leituras, esbarrado com a passagem acima, tirada do primeiro volume de “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust (aqui, na tradução magistral de Mário Quintana, editora Globo). Mas para quem só teve o prazer de ler isso agora, vale esclarecer que o tal bolo era uma daquelas “madelaines”, como são conhecidas no original francês.
Feitas de farinha e açúcar, as madalenas em si não trazem nada de especial, mesmo no panorama da gastronomia francesa. Não tem a explosão cremosa das bombas (“éclaires”) nem a crocância suave de um mil folhas, tampouco as cores e possibilidades de um “macaron”.
Mas nenhum desses clássicos teve a honra de abrir as portas para uma das mais importantes obras da literatura mundial. É pelas sensações que a madalena provoca dentro da boca, que o narrador de “Em busca do tempo perdido” nos embarca numa das histórias mais fascinantes jamais escritas.
E quem nunca viveu isso? Um sabor de infância pode ter o mesmo poder. Um canudinho de doce de leite. Ou uma tapioca com manteiga de garrafa. Um coração de frango grelhado! Sabores são sim gatilhos de memórias e não só da nossa tenra idade.
Quando enchemos nossa mala de temperos de lugares que visitamos pelo mundo, garantimos que, ao usar umas colheres de “fish sauce” da Tailândia, um ramo de baunilha de Madagascar, algumas folha de epazote do México, ou uma colherada de tahini de Israel, vamos nos transportar a estes destinos, não importa em que mesa eles sejam servidos.
Aqui mesmo neste espaço já saudei o peixe frito do Cha Ca La Vong, o restaurante de um prato só, centro de peregrinação para os “gastroturistas” do mundo. Também já exaltei aqui as maravilhas de chefs estrelados (pelo Michelin!) em Paris: o brasileiro Raphael Rego e o italiano Simone Tondo. E as de um pastel comido nas estradas no Rio Grande do Norte.
Mas esse nosso mundão nos oferece muito mais. Para qualquer lugar que apontemos nossa bússola gustativa, vamos encontrar ou rememorar momentos marcantes de viagens, ou ainda, da nossa vida, que começaram com uma garfada. Ou colherada.
Como a carne seca frita com alho e tamarindo que provei numa das despedidas de Luang Prabang, no Laos, talvez meu lugar favorito no mundo. A cachaça de pinga que tomei lá, e cuja única garrafinha que trouxe eu tomo em quantidades mínimas enquanto não posso voltar para lá, também me faz lembrar de uma das comemorações mais incríveis da minha vida .
Ou a samosa que a mãe do meu amigo, Varunesh Tuli, com quem escrevi um livro de receitas indianas, me serviu um dia às 3h da manhã na sua casa em Nova Déli. Ou a estranha e deliciosa feijoada que dona Celeste me serviu em Goa. Ou o “nero de seppia” que de tão bom me fez pagar o mico de mandar um recado para um chef em Siena (Itália) no próprio prato em que comi.
Ou… ou… ou… São tantas portas, parafraseando Marisa Monte no seu novo e belíssimo álbum, que a gente pode abrir só com nosso paladar. Por isso resolvi transformar isso em viagens saborosas e chamar você para vir junto.
A partir de um ingrediente, vou agora preparar itinerários do paladar e misturar histórias de viagens com receitas inesperadas, num programa que estreia esta semana no novo canal a cabo sobre gastronomia, Sabor & Arte.
E vamos começar com… uma berinjela! Ela será nosso passaporte para percorrer a Turquia. Depois, o jambu vai nos levar pelo Pará, o cardamomo pela Índia, a mandioca pelos Lençóis Maranhenses.
E depois, sabe-se lá para onde pois são infinitas as madalenas desse mundo. Faça suas malas. Traga talheres… mas vale também comer com a mão!
Fonte: Folha de S.Paulo