- Dalia Ventura
- BBC News Mundo
Por várias décadas, este foi um mistério não solucionado entre especialistas e entusiastas do Antigo Egito, uma das civilizações mais antigas e duradouras do mundo.
À primeira vista, parece algo esperado: a passagem de milhares de anos torna inevitável o desgaste de qualquer obra. Mas por que havia tantas estátuas imaculadas em que a única parte que faltava era o nariz?
Talvez porque, afinal, se algo corre o risco de quebrar, é aquela parte proeminente, a mais exposta.
No entanto, se for assim, como explicar que obras de representação bidimensional geralmente apresentem os mesmos danos?
O assunto deu origem a suposições, incluindo uma hipótese amarga que continua recorrente, embora tenha sido refutada: a de que teria sido uma tentativa dos colonialistas europeus de apagar as raízes africanas dos antigos egípcios.
No entanto, especialistas afirmam que essa teoria é infundada, entre outras razões porque os narizes não são a única evidência física dessas origens. E eles concordam que, apesar dos muitos horrores do imperialismo, este não seria um deles.
Então, o que poderia ter acontecido?
Poderes divinos
A resposta mais confiável neste ponto se resume em uma palavra: iconoclastia (do grego Eikonoklasmos, que significa “quebra de imagens”).
Não estamos falando dos seguidores da corrente do século 8 que rejeitaram o culto às imagens sagradas, destruíram-nas e perseguiram aqueles que as veneravam. Nesse caso, o termo é usado de forma mais ampla para se referir à crença social na importância da destruição de ícones e outras imagens ou monumentos, muitas vezes por motivos religiosos ou políticos.
E faz muito sentido quando você considera que, para os antigos egípcios, as estátuas eram o ponto de contato entre os seres divinos e os terrenos.
Os antigos egípcios acreditavam que as imagens poderiam abrigar poder sobrenatural, como explica Edward Bleiberg, o curador sênior de arte egípcia, clássica e do antigo Oriente Médio do Museu do Brooklyn nos Estados Unidos.
Bleiberg explorou a questão motivado pelo fato de que a indagação mais comum dos visitantes do museu era “por que seus narizes estão quebrados?”. Ele explica que as palavras “escultura” e “escultor” enfatizam que as imagens estão vivas.
A palavra “escultura” significa literalmente “algo criado para viver”, enquanto um escultor é “alguém que lhe dá vida”.
Objetos que representavam a forma humana, em pedra, metal, madeira, argila ou mesmo cera, podiam ser ocupados por um deus ou um humano que faleceu e se tornou um ser divino, podendo assim atuar no mundo material.
Isto se conta sobre Hathor, a deusa do amor e da fertilidade, em uma inscrição nas paredes do templo de Dendera, provavelmente construído pelo Faraó Pepy I (2310-2260 a.C):
“(…) Voa do céu para entrar no Horizonte de sua Alma [isto é, seu templo] na Terra, voa em direção ao seu corpo, se une à sua forma.”
Nesse caso, a deusa imbui uma figura tridimensional, mas no mesmo templo fala-se sobre como Osíris (um dos deuses mais importantes do Egito Antigo) se funde com uma representação em relevo de si mesmo:
“Osiris… vem como um espírito … Ele vê sua forma misteriosa representada em seu lugar, sua figura gravada na parede; entra em sua forma misteriosa, apoia-se em sua imagem.”
Uma vez ocupadas, as imagens tinham poderes que podiam ser ativados por meio de rituais. E também podiam ser desativados por danos deliberados.
Mas por que fazer isso?
Os motivos eram muitos, desde raiva e ressentimento contra os inimigos que queriam ferir neste mundo e no próximo, ao terror da vingança do defunto sentido pelos ladrões de túmulos, bem como o desejo de reescrever a história ou sonhos de mudar toda a cultura.
Quando o pai de Tutancâmon, Akhenaton, que governou entre 1353-1336 a.C, quis que a religião egípcia girasse em torno de um deus, Aton, uma divindade solar, ele enfrentou um ser poderoso: o deus Amon.
Sua arma foi a destruição de imagens.
A situação foi revertida quando Akhenaton morreu e o povo egípcio retomou o culto tradicional: templos e monumentos em homenagem a Aton e o falecido Faraó foram, desta vez, os que enfrentaram a destruição.
Mas devemos lembrar que não eram apenas os deuses que podiam habitar as imagens, mas também os humanos que tinham morrido e, após a longa e tortuosa jornada até o Salão da Dupla Verdade, demonstrado sua decência no Julgamento da alma, convertendo-se em seres divinos.
Saber que seus ancestrais continuam a acompanhá-lo apesar da morte pode ser reconfortante… mas também preocupante, principalmente se você for alguém poderoso e não quiser que o passado o ofusque.
E as lutas pelo poder costumam deixar cicatrizes.
Quando Tutemés III, que governou de 1479 a 1425 a.C, quis ter certeza de que seu filho o sucederia, ele tentou apagar sua antecessora e madrasta Hatshepsut da história, destruindo a evidência física de sua existência. E ele quase conseguiu.
Preocupação constante
Esses exemplos podem dar a impressão de que isso só aconteceu em casos extremos, mas a destruição de representações de divindades ou humanos era tão comum que, como documentou o egiptólogo Robert K. Ritner, era uma preocupação constante no Egito Antigo.
Entre os vários textos que expressam essa preocupação está um decreto real do Primeiro Período Intermediário (cerca de 2130-1980 a.C):
“Quem em toda esta terra fizer algo nocivo ou perverso às suas estátuas, lajes, capelas, carpintarias ou monumentos que se encontrem no recinto de algum templo, Minha Majestade não permitirá que sua propriedade ou a de seus pais permaneçam com eles, ou se junte aos espíritos da necrópole, ou permaneça entre os vivos.”
Os ataques contra os túmulos eram igualmente graves e temidos.
Um homem chamado Wersu de Coptos, que viveu durante a 18ª Dinastia (por volta de 1539-1295 a.C), registrou uma ameaça que dizia:
“Quanto a qualquer um que ataque meu cadáver na necrópole, e que tire minha estátua de meu túmulo, [o deus do sol] Rá o odiará. Ele não terá água do altar de [deus] Osíris, ele nunca passará sua propriedade para seus filhos.”
E o nariz?
As mutilações tinham então a intenção de restringir o poder e isso poderia ser feito de diferentes maneiras.
Se você quisesse evitar que os humanos representados fizessem oferendas aos deuses, você poderia remover o braço que era comumente usado para tal tarefa: o esquerdo.
Se você quisesse que o deus não os ouvisse, você removia as orelhas da divindade.
Se sua intenção era acabar com todas as possibilidades de comunicação, separar a cabeça do corpo era uma boa opção.
Mas talvez o método mais eficaz e rápido de realizar seus desejos fosse remover o nariz.
“O nariz era a fonte do fôlego, o fôlego da vida; a maneira mais fácil de matar o espírito interior era sufocá-lo removendo o nariz”, explica Bleiberg.
Alguns golpes de martelo e cinzel e o problema estava resolvido.
O paradoxo, afinal, é que essa compulsão de destruir as imagens é a prova de como elas foram importantes para aquela grande civilização.
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Fonte: BBC