Amy Coney Barrett: o que é o People of Praise, grupo ao qual pertence indicada de Trump à Suprema Corte

Amy Coney Barrett

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A nomeação de Barrett colocou os holofotes na comunidade People of Praise

“Quando se lê seus discursos, a conclusão a que se chega é que o dogma vive fortemente dentro de você.”

Com essas palavras, a senadora Dianne Feinstein resumiu a preocupação dos legisladores do Partido Democrata com a juíza Amy Coney Barrett, que esta semana está passando por audiências de confirmação no Congresso dos Estados Unidos após ter sido indicada pelo presidente Donald Trump como juíza da Suprema Corte.

A frase de Feinstein, que fazia referência direta à fé religiosa de Barrett e lembrava que “dogma e lei são duas coisas diferentes”, não foi pronunciada agora, mas em setembro de 2017, quando ela foi nomeada juíza de um Tribunal de Apelação.

A questão ressurgiu em 2018, quando se descobriu que o nome de Barrett estava em uma lista de Trump para substituir o juiz Anthony Kennedy, que se aposentou da Suprema Corte.

Em 2017, Barrett, uma católica praticante, disse que se surgir um conflito entre suas crenças pessoais e seu dever perante a lei, “eu nunca colocaria minhas convicções pessoais acima da lei”.

A posição foi ratificada novamente nesta terça-feira (13/10) no Senado.

No entanto, o debate sobre sua postura não parou. Por quê?

A resposta está em grande parte no fato de que sua nomeação poderia alterar significativamente o equilíbrio ideológico dentro do tribunal, que terminaria composto por seis conservadores e três progressistas.

Isso também ocorreria em um momento em que se espera que o mais alto tribunal americano tenha que decidir em breve sobre casos importantes e controversos em questões como aborto ou a Lei Obamacare, de saúde pública.

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A senadora Dianne Feinstein foi quem em 2017 expressou dúvidas sobre a capacidade de Barrett de separar suas crenças religiosas de seu trabalho como juíza

Outro elemento polêmico, no entanto, é o fato de Barrett — além de ser católica — estar ligada desde a infância a um polêmico e pouco conhecido grupo de cristãos chamado People of Praise (ou Povo do Louvor).

Do que se trata?

Heterogêneo e carismático

People of Praise é um grupo cujos membros afirmam admirar os primeiros cristãos “que foram guiados pelo Espírito Santo para formar uma comunidade”.

Entre suas características distintas está o fato de seus integrantes acreditarem que vivem um vínculo com o Espírito Santo por meio de experiências que incluem curas por meio da oração, a habilidade de fazer profecias e falar em línguas.

Nascido em 1971 em South Bend (no Estado de Indiana) no calor da chamada renovação carismática católica, atualmente é um grupo heterogêneo, já que está aberto à participação de cristãos de todas as afiliações.

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Em 1975, o Papa Paulo 6º acolheu no Vaticano o movimento de renovação carismática ao qual o People of Praise estava ligado

Com cerca de 1,7 mil membros distribuídos em cerca de 22 cidades dos Estados Unidos, Canadá e Caribe, o outro elemento que define o grupo é constituir-se como uma comunidade muito unida, cujos membros assumem um pacto que os leva não só a compartilhar a fé, mas também a vida em grupo, incluindo bens materiais, a ponto de ser visto como uma comunidade com tendências endogâmicas, uma vez que seus membros tendem a se relacionar e se casar entre si.

Esse é precisamente o caso de Amy Coney Barrett, que cresceu em uma comunidade do People of Praise na Louisiana e mais tarde acabou se casando com Jesse Barrett, que também havia sido criado naquela comunidade, mas em South Bend.

De acordo com o jornal The New York Times, a vida da família Coney em Nova Orleans girava em torno dessa comunidade cristã a tal ponto que, cerca de 35 anos atrás, o pai da juíza Barrett, Mike Coney, decidiu renunciar ao seu emprego, rejeitando uma promoção profissional que o obrigaria a se mudar para o Texas, preferindo ficar na Louisiana.

“Nossa vida era uma ‘comunidade de aliança’ em Nova Orleans. Para o bem de nossos filhos e de nós mesmos, precisávamos de relacionamentos comprometidos com outros cristãos que levassem sua fé a sério”, disse Coney, anos depois de uma entrevista para uma revista da comunidade citada pelo New York Times.

Segundo o jornal americano, o pai da juíza tornou-se membro do Conselho Nacional de Diretores do People of Praise.

Do ponto de vista de crenças, a organização tem uma visão conservadora em questões como sexo e aborto, parecida com a de muitos outros grupos religiosos.

O que diferencia este grupo dos demais é o grau de envolvimento dos seus integrantes na vida da comunidade e, principalmente, da comunidade na vida dos membros.

Uma aliança para a vida

O grau de interferência na vida em comum deriva em grande parte da concepção do People of Praise como uma “comunidade de aliança”.

Adrian J. Reimers, que foi um dos membros fundadores e seguiu na organização até 1985, considera esta uma definição “significativa”.

“O People of Praise não se vê apenas como um grupo de pessoas, mas sim como um povo no sentido cultural e social, semelhante ao povo de Israel”, escreveu Reimers em um artigo crítico à comunidade publicado em 1986.

“Esta não seria simplesmente uma comunidade reunida em torno de um grupo de crenças e valores comuns, mas um povo, um clã ou grupo de clãs, cujos membros reconhecem a existência de um tipo de relação familiar entre eles e que compartilham costumes, governo e padrões de crença comuns”, escreveu Reimers.

Como a organização explica em seu site, os membros do People of Praise assumem um pacto vitalício pelo qual se comprometem a “servir uns aos outros de todo o coração, independentemente do tipo de necessidade: espiritual, material ou financeira”.

Seus integrantes são incentivados a contribuir com 5% de sua renda bruta para ajudar a financiar o funcionamento da comunidade.

O pacto é assumido livremente pelos adultos após um período de reflexão que dura entre três e seis anos; e pode ser abandonado a qualquer momento.

No entanto, Reimers assinala em seu artigo que a forma como este pacto com a comunidade é assumido implica que se trata de um compromisso que não pode ser abandonado sem colocar em jogo a própria integridade como pessoa, visto que isso se apresenta como um dos pilares da própria vida.

“Para os integrantes do People of Praise, este pacto é o determinante e central em suas vidas. É o eixo em torno do qual se estrutura a vida espiritual, social e familiar”, afirmou.

Gênero e obediência

Uma das regras mais polêmicas do People of Praise é que cada integrante recebe um “chefe”, uma espécie de guia que o orienta nas inúmeras decisões de sua vida.

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A Universidade de Notre Dame, onde Barrett estudou e lecionou, fica em South Bend, Indiana, onde surgiu o People of Praise

Segundo Reimers, são tópicos que vão desde a maneira correta de disciplinar os filhos, como administrar seu relacionamento com sua esposa, aceitar uma promoção no trabalho ou decidir comprar um carro novo.

No caso das mulheres casadas, o “chefe” é considerado o próprio marido, o que alguns críticos interpretam como um sinal de machismo, apesar da afirmação de que isso não dá ao marido o direito de tentar dominar a esposa.

Relatos de ex-membros da comunidade à imprensa americana indicam que as famílias tendem a ser grandes (como os Barretts, que têm 7 filhos) e as mulheres tendem a não trabalhar.

No caso da juíza, isso não parece ter sido um problema e ela conseguiu desenvolver uma carreira profissional de sucesso — não apesar do marido, mas graças ao seu “forte apoio”.

“No início de nosso casamento, imaginei que administraríamos a casa como sócios. Mas descobri que Jesse faz muito mais trabalho do que lhe corresponde”, disse a juíza durante a cerimônia na Casa Branca em que sua nomeação foi oficializada.

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Com Barrett, Trump completa três nomeações para a Suprema Corte

Segundo o relato de Reimers, os “patrões” também desempenham papel de destaque na vida dos jovens solteiros, pois fazem parte do processo de namoro, ajudando a discernir se a pessoa está pronta para começar a procurar um companheiro para casar. E depois, quando o parceiro é encontrado, ajudar a determinar se o casal deve se casar ou não.

“Os casamentos no People of Praise são eventos comunitários, em vez de eventos familiares”, disse Reimers.

Em seu artigo, o ex-integrante da comunidade de South Bend também afirma que a organização desenvolveu um modelo que busca garantir a obediência dos membros à hierarquia e que, no caso dos católicos, os afasta de sua igreja.

“Ouvi um coordenador dizer à minha esposa para não discutir sua vida no confessionário: apenas diga seus pecados, obtenha a absolvição e saia de lá, disse ele. Meu chefe me disse que não era aconselhável que os integrantes da comunidade busquem conselho espiritual de padres e sei que outros receberam conselhos semelhantes “, disse ele.

É importante frisar que os eventos narrados por Reimers ocorreram na década de 1980 e que ele é um ex-integrante brigado com o People of Praise.

A BBC tentou falar diretamente com os responsáveis desta comunidade cristã, mas eles indicaram que, no momento, não estão concedendo entrevistas.

Um vínculo sem definições claras

Mas até que ponto Barrett está agora ligada ao People of Praise?

A questão é difícil de ser respondida porque nos últimos tempos essa comunidade não esclareceu sua relação com Barrett e, de acordo com o New York Times recentemente, algumas notícias em que a juíza e sua família foram mencionadas desapareceram de seu site.

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Como professora de direito na Universidade de Notre Dame, Barrett assinou um manifesto anti-aborto

Barrett, por sua vez, não parece ter falado publicamente sobre seus laços com a comunidade.

O New York Times afirma ter obtido uma relação dos membros do grupo em South Bend que lista a juíza como uma das 11 líderes locais.

Além disso, entre 2015 e 2017 a juíza fez parte da diretoria da Trinity School, uma escola particular criada pela comunidade que alguns de seus filhos frequentam.

E quanto peso, se houver, terá sua afiliação passada ou presente com o People of Praise em suas decisões judiciais?

Para responder a essa pergunta, teremos que esperar que ela seja homologada como juíza da Suprema Corte.

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Fonte: BBC