A fome e a vontade de comer

Era para ser uma leitura recreativa e só. No artigo “Max Tongue”, publicado ontem (23/7) aqui na Folha, Tati Bernardi fala da aquisição de um estimulador de clitóris. Eis que descubro, num arremedo de epifania: ela e eu usamos o mesmo produto.

Não me refiro ao brinquedinho sexual. Falo (spoiler: falo é o tema desta coluna) da venlafaxina, droga antidepressiva e ansiolítica que praticamente a obrigou a comprar a tal máquina de orgasmos.

Tati conta que demorava 40 minutos ou mais para gozar no ato sexual. Que esse é um efeito colateral da venlafaxina. E que foi o psiquiatra quem recomendou a aquisição da língua biônica mágica.

Liguei os pontos e vi algo que só me ocorria como desconfiança. Nos cinco anos que passei dopado de venlafaxina, minha libido zerou –e eu atribuía a inapetência à doença, não ao remédio. Bem, eu estava dopado.

Não que o antidepressivo seja de todo ruim. Graças a ele, controlei os surtos de euforia, a tristeza paralisante, os ímpetos de fúria. Meu humor se achatou, tornou-se plano, liso, sem picos nem arestas de coisa nenhuma. Cômodo e útil. Nada de emoções perigosas demais.

A morte do desejo faz sentido nesse quadro. Sexo é explosão, e a droga trabalha para abafar até os mínimos traques.

Outras químicas me ajudaram a fingir que eu ainda era sexualmente ativo. Do ponto de vista fisiológico, vascular, uma maravilha: dá-lhe sangue nos corpos cavernosos. Nada que pudesse conter o déficit de atenção no meio da transa. Degradante, mas me acostumei. Quem nunca?

Então vieram juntos a pandemia e o colapso das finanças. O remédio ia acabar e eu pedi à minha psiquiatra, por zap, mais receitas.

Ela condicionou a prescrição a uma consulta –não necessariamente presencial, mas obviamente paga. Argumentei que não poderia gastar R$ 500 numa receita e, na resposta transmitida pela secretária, ouvi que tinha desconto de paciente antigo –a hora da doutora já custava R$ 650. Mandei a doutora passear.

Reduzi minha dose até parar, lentamente para mitigar a síndrome de abstinência. Ainda assim, tive numerosas crises de choro e surtos maníacos que me fizeram passar a madrugada no Twitter, brigando com desconhecidos. E olha só, que coisa curiosa: sexo já me interessa de novo.

Longe de mim fazer apologia do abandono de tratamentos psiquiátricos. Crianças, obedeçam a seus médicos. Apenas tentem não ser cegas.

Tomei uma sinuca do destino, agi assim, não me arrependo e pude ver que, no combo de soluções da venlafaxina, vinha um baita de um problema que eu não tinha antes. A doutora até o citou en passant, como um incômodo menor, nas consultas com desconto.

Se eu tivesse me queixado com ênfase (ênfase no negrito) à psiquiatra, talvez ela me indicasse um outro tratamento. Mas a venlafaxina roubava, além da minha libido, toda a minha ênfase. Não é legal ser refém de um comprimido.

Sei lá se estou melhor ou pior. Só sei que recuperei a fome e a vontade de comer. Gosto disso.

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P.S.: A quem se queixa de que esta coluna de culinária não fala de receitas, a receita está no oitavo parágrafo

Fonte: Folha de S.Paulo