Fazer quarentena em hotel é suportar um dia de cada vez em isolamento compulsório

May Samali sabia que tinha chegado ao seu limite quando viu um tentáculo emergir de seu jantar, em um hotel de Sydney.

“Liguei para a recepção e avisei que a partir daquele minuto tinha virado vegana”, ela disse. “Era peixe demais. Cheguei a um ponto em que pensar em peixe bastava para me fazer querer vomitar”.

Samali decidiu rejeitar para sempre os frutos do mar no meio de sua quarentena obrigatória no Hotel Sofitel de Sydney, em dezembro e no começo de janeiro. Ela é coach de gestão, e estava retornando à Austrália depois que seu visto de trabalho nos Estados Unidos expirou. Além de encarar o excesso de peixe, Samali teve de ficar confinada em seu quarto o dia inteiro, proibida de pisar do lado de fora, por duas semanas.

Pessoas que fazem viagens aéreas em todo o mundo vêm tendo de encarar situações semelhantes, e suportar quarentenas em hotéis, impostas por governos, quando viajam a países que levam muito a sério os esforços de contenção do coronavírus.

A quarentena dessas pessoas não é curta e confortável como as dos resorts que criam “bolhas” para receber seus hóspedes em destinos como Kauai (Havaí) ou as Ilhas Virgens Britânicas. Nessas bolhas, as pessoas podem circular livremente nos terrenos relativamente amplos dos resorts, enquanto esperam o resultado de exames que confirmem que não são portadoras de coronavírus.

Estamos falando de experiências de quarentena mais extremas, mas nem por isso menos típicas. O isolamento compulsório envolve confinamento no quarto, 24 horas por dia, por até duas semanas (se os resultados do exame de coronavírus forem negativos, claro). E, com algumas exceções, é o viajante que paga a conta —a quarentena no estado australiano de Nova Gales do Sul, por exemplo, custa cerca de US$ 2.300 (3.000 dólares australianos, ou R$ 12.840) para um adulto, e até US$ 5.000 dólares australianos para uma família de quatro pessoas que passe duas semanas confinada em um hotel.

Em janeiro, o Reino Unido anunciou uma quarentena compulsória de 10 dias para os viajantes chegados de áreas de alto risco, ao custo de cerca de US$ 2.500 (R$ 13.956) para um adulto.

Os viajantes que visitarem países que impõem quarentena compulsória em hotéis, uma lista que inclui Nova Zelândia, Tunísia e a China continental, precisam de justificativas para suas viagens —visitas a parentes doentes, ocasiões “essenciais” de negócios, ou uma mudança permanente de residência.

A maior parte das pessoas aceita as inconveniências e a claustrofobia inevitável da quarentena como o preço de poderem viajar. Mas embora possa existir certo conforto em estabelecer alguma forma de rotina, os viajantes sentem falta de contato humano, ar fresco e, também, de comida mais variada (a equipe do Sofitel atendeu facilmente o pedido de Samali. Ela continua a não comer peixe.)

As pessoas estão viajando muito menos, em termos gerais —os dois primeiros meses deste ano viram um número de passageiros de viagens aéreas inferior à metade do registrado no período em 2020, de acordo com estatísticas de viagem divulgadas pela Administração da Segurança nos Transportes, uma agência federal americana, abarcando todas as partidas em voos nacionais e internacionais dos Estados Unidos no período.

A quarentena de viagem pode parecer administrável, e talvez tenha se tornado até uma experiência familiar, para pessoas que vivem em lugares que colocaram em vigor ordens de confinamento caseiro, e que se acostumaram a trabalhar de casa. Pete Lee, cineasta radicado em San Francisco, não se preocupou com a quarentena ao viajar a Taiwan para trabalhar e visitar a família.

“Eu nem me abalei ao ser informado da regra”, disse Lee durante seu oitavo dia de confinamento no Roaders Hotel, em Taipei, Taiwan. “Estava acostumado a ficar trancado no meu apartamento em San Francisco 22 horas por dia! Mas é uma experiência surpreendentemente intensa. As duas horas de liberdade fazem muita diferença”.

Destino desconhecido

A forma pela qual a vida em quarentena transcorre é determinada, em boa parte, pelo hotel em que a pessoa ficar. E a depender do destino de sua viagem, o hotel pode ou ser escolhido pelo viajante, ou designado para ele. Lee pôde escolher e reservou seu hotel para quarentena com base em uma lista compilada pelo governo de Taiwan, que incluía informações sobre localização, custo, tamanho do quarto e a presença (ou ausência) de janelas. Ele teve de pagar a conta pela estadia.

De modo semelhante, Ouiem Chettaoui, especialista em políticas públicas que divide seu tempo entre Washington e a Tunísia, pôde escolher um hotel para sua semana de quarentena, ao voltar a Túnis com o marido em setembro; ela baseou sua seleção, o Medina Belisaire & Thalasso, no preço e na proximidade do Mar Mediterrâneo. “Não tínhamos vista para o mar, mas podíamos pelo menos ouvir as ondas… Ou pelo menos dissemos a nós mesmos que podíamos!”, ela comentou.

Brett Barna, administrador de investimentos que se transferiu para Xangai com sua noiva em novembro, pôde selecionar a área da cidade em que queria ficar, mas não um hotel específico. Em uma tentativa de melhorar a probabilidade de conseguir um bom hotel, Barna selecionou Huangpu, um bairro de classe alta, onde sua esperança era a de que os hotéis fossem melhores.

“Havia quatro hotéis possíveis no bairro, três dos quais eram bons. E havia uma opção mais econômica, o Budget Inn”, ele disse. Barna e sua noiva terminaram tendo de pagar, a contragosto, pela quarentena neste último hotel, que tinha papel de parede descascado e manchas de água sanitária nos pisos graças às práticas agressivas de limpeza de aposentos.

Joy Jones, coach e educadora radicada em San Francisco, viajou para a Nova Zelândia com o marido, que é neozelandês, e as duas filhas pequenas do casal, em janeiro. Ela foi informada antes de partir de que a família não teria escolha sobre seu local de quarentena, ao chegar ao país.

“Essa foi provavelmente a parte mais difícil”, ela disse. “Eu montei uma sacola com atividades para minha filha mais velha, e planejava lavar as roupas na pia do quarto. Mas não ter resposta sobre onde seríamos hospedados —e isso depois de mais de 21 horas de voo, de máscara—, foi complicado. Será que teríamos mais um voo ao chegar? Uma viagem de ônibus de três horas de duração?” Nada disso aconteceu. Jones e sua família foram levados ao Stamford Plaza, um hotel em Auckland, a apenas 25 minutos do aeroporto.

Pim Techamuanvivit e seu marido neozelandês, por outro lado, não tiveram a mesma sorte. Depois de chegar a Auckland vindos de San Francisco, eles foram instruídos a embarcar de imediato em um voo para Christchurch, e transportados para o hotel Novotel Christchurch Airport. “Àquela altura, a única coisa que queríamos, muito, muito, muito, era chegar ao hotel”, disse Techamuanvivit, chefe de cozinha e proprietária do restaurante Nahm, em Bancoc.

O alívio ao —enfim— chegar costuma ser a reação inicial, mas não demora muito tempo para que a realidade da situação se imponha. O quarto de hotel é tudo que o viajante poderá ver, e por um período de tempo nem tão insignificante.

Como diz Adrian Wallace, gerente de projetos de tecnologia que passou por uma quarentena no Sydney Hilton em agosto depois de uma visita ao pai doente no Reino Unido, “o momento em que a porta se fecha… faz você lembrar da cena inicial de ‘Um Sonho de Liberdade’”, ele afirmou, em referência ao filme sobre a vida de presidiários estrelado por Tim Robbins e Morgan Freeman em 1994.

Passando o tempo

O desafio é administrar o tédio. Trabalhar do hotel ajudou a passar o tempo, para diversos viajantes, entre os quais Tait Sye, diretor sênior da Planned Parenthood Federation of America, que viajou de Washington para Taipei em novembro. Sye tentou manter o horário de trabalho da costa leste dos Estados Unidos pela maior parte de sua quarentena, que ele passou no Hanns House Hotel; ele trabalhava das 22h às 6h, no horário local.

Wallace correu o equivalente a uma meia-maratona em seu quarto de hotel em Sydney. Ele não tinha como ajustar o ar condicionado do quarto, e suava demais. Barna e sua noiva, em Xangai, organizaram encontros românticos via Zoom, porque as regras oficiais de quarentena os obrigaram a passar o período em quartos separados. Um dos pontos altos de seus dias eram as visitas diárias de um empregado do hotel, vestindo traje protetor completo, para medir suas temperaturas à porta. Eles não tinham autorização de sair nem mesmo para o corredor.

Na Nova Zelândia, viajantes que passem por exames que comprovem que não são portadores do vírus são autorizados a sair do quarto e passear pelas áreas comuns do hotel, mas são fiscalizados por seguranças em diversos pontos do percurso (o uso de máscara continua obrigatório, assim como as regras de distanciamento social; o regime pode ser alterado rapidamente caso surja qualquer ameaça de um surto no país.)

Poder respirar ar fresco e caminhar era importante para Jones, e as duas coisas se tornaram parte importante da rotina que ela criou para sua família. Outros aspectos incluíam ioga matinal, estudo remoto, sonecas, horários para brincadeiras e projetos de arte. (O marido dela continuou trabalhando, usando o banheiro como escritório.)

“Decoramos um cavalo de papel e o penduramos da janela —a cada dia decorávamos um pedaço diferente dele. Essa se tornou uma de nossas atividades favoritas. De vez em quando, fazíamos uma festa e dançávamos. E assistíamos a um filme a cada noite. Fizemos o que pudemos para criar alguma diversão durante a estadia”, disse Jones.

Três refeições por dia

As refeições se tornam parte importante da vida em quarentena, como forma de marcar a passagem do tempo e como uma rotina que ajuda a quebrar a monotonia de cada dia. Mas a qualidade da comida varia amplamente, como Sye descobriu em Taipei, onde as refeições eram encomendadas de restaurantes próximos do hotel.

Ele relembra os momentos deliciosos de uma refeição do Kam’s Roast Goose, um restaurante que tem estrela do guia Michelin, o carinho da decoração de um jantar de noite de ação de graças decorado com um peru de cartolina, e uma pizza absolutamente horrível, o ponto mais baixo de sua quarentena em termos gastronômicos (mas ela pelo menos veio acompanhada por uma cerveja).

Para Techamuanvivit, que documentou sua quarentena em Christchurch no Twitter, poder pedir comida e mantimentos para entrega no hotel foi uma salvação. “Sou chefe de cozinha, e acho que posso me definir como meio esnobe”, ela disse. “Como dona de restaurante, não amo o UberEats. Mas poder pedir comida indiana foi importante”. (Outras das pessoas que fizeram quarentena em lugares que permitiam pedir comida fora do hotel também destacam esse fator como muito importante.)

Techamuanvivit melhorava as refeições do hotel com os picles que acompanhavam os pratos indianos que pedia, e descobriu que o molho grego pedido em uma mercearia próxima funcionava bem como acompanhamento para saladas. Ela e o marido também aproveitaram para escolher bons vinhos da carta de vinhos do hotel. (Na Austrália e Nova Zelândia, os hóspedes em quarentena estão limitados a seis garrafas de cerveja ou uma garrafa de vinho por pessoa/dia, talvez para evitar explosões de mau humor facilitadas pelo álcool. Em Xangai, o consumo de álcool não é permitido durante a quarentena.)

Buscar conexão na mídia social

Há grupos no Facebook dedicados às quarentenas em hotel, divididos por região e até mesmo por hotel específico. Os membros trocam dicas sobre como cozinhar ovos usando as chaleiras dos quartos, e como preparar refeições usando um ferro de passar para “cozinhar” a comida. Os grupos também servem como uma forma de acesso a uma comunidade. Wallace, que descobriu a existência de um grupo sobre o Hilton no Facebook durante a viagem de ônibus que o levou do aeroporto para o hotel, participava de uma conversa diária via Zoom com integrantes do grupo. (As refeições do dia eram um dos assuntos constantes de conversa.)

Lee serviu como moderador em conversas sobre cinema no Clubhouse, um app de mídia social com acesso apenas para convidados, e usou bastante o Tinder na quarentena; ele fez contato com uma mulher que estava perto do fim de seu confinamento, em outro hotel da cidade.

Jones documentou as experiências de sua família durante a quarentena em sua conta pessoal do Instagram, mostrando fortes feitos de cobertores, concursos de aviõezinhos de papel, e “boliche” jogado com garrafas de água vazias e uma bola de papel amassado. Ela ficou comovida por amigos e parentes na Nova Zelândia e nos Estados Unidos terem enviado refeições, presentes e brinquedos para suas filhas, em resposta às suas mensagens.

“Foi muito bacana, e me senti amada, e conectada, em um momento de tamanho isolamento”.

Tradução de Paulo Migliacci

Fonte: Folha de S.Paulo