Sonhando com a rua

A comida é um dos meios de alimentar o sonho de viajar. No meio da pandemia, mais ainda. A segunda temporada da série “Street Food”, da Netflix, atualiza esta verdade e ao mesmo tempo acrescenta uma cruel ponta de esperança. Por vários motivos.

É que a temporada trata da América Latina —e nós, por enquanto banidos de quase todo o mundo, podemos sonhar em talvez logo ir ao menos até nossos vizinhos.

Outra razão para ficar por perto é que muita gente (fora do 1% da população) vem empobrecendo; e, sendo assim, o primeiro arroubo de viagem não deve ser para gastos em euro ou dólar, mas em moedas mais modestas.

E, para completar, a série de TV é atraente porque desta vez não exibe chefs estrelados em restaurantes de luxo; ela foca uma gastronomia mais barata, teoricamente de rua (embora a principal atração dos episódios não sejam bancas de ambulantes, mas restaurantes, ainda que populares).

Por sinal, ao contrário da hagiografia soporífera que o mesmo criador imprimiu à série “Chef’s Table“, nesse caso os episódios são mais interessantes —duram metade do tempo e abordam vários personagens cada um, melhor do que quando ficavam quase uma hora endeusando um único cozinheiro.

Então, ao assistir, em “Street Food”, aos seis episódios de lugares estrangeiros —mas relativamente próximos (um deles no Brasil)— e comidas atraentes —mas baratíssimas—, como não sonhar que daqui a pouco possamos estar lá?

Sonhar não custa, mas o lado amargo, ou cruel, começa pelo fato de que não sabemos se isto será possível tão logo.

E, mais triste: não sabemos se esses personagens estarão ainda lá. Se terão sobrevivido. Cadeias nefastas de fast-food também estão sofrendo com a pandemia, mas seguramente se aguentam; já pequenos negócios, não se sabe até quando.

Enquanto muito vaticinam que o mundo será totalmente diferente ao final desta tragédia, eu tenho a forte impressão de que em algum momento vamos sair dela e que muita coisa voltará ao que era antes —para o bem e para o mal. A humanidade é teimosa e burra.

Lendo o livro de Natalia Ginzburg, “As Pequenas Virtudes“, vi seu relato de como a Segunda Guerra Mundial mudou as pessoas que estiveram no olho do furacão, ou bem perto dele. Mas foram quase cinco anos de bombardeios e vilania humana destruindo vidas, casas, memórias.

Aí fui ler relatos da grande epidemia mundial da gripe espanhola, cem anos atrás. Ela durou pouco mais de um ano, entre 1918 e 1919.

Foi provavelmente mais dolorida do que a da Covid-19, pois havia menos recursos da medicina. E o vírus era estupidamente mortal. Mas o remédio foi basicamente o mesmo dos dias de hoje: quarentena e paciência (não houve vacina).

Não sei se existiam tantos canalhas genocidas com a importância dos atuais, como Trump e Bolsonaro. Devia haver —assim caminha a humanidade—, mas em pouco mais de um ano as coisas se normalizaram.

Se este for o tempo de travessia que nos espera até o outro lado do Rubicão, imagino que o prazer de viajar, bem como o de comer fora com pessoas queridas, deve voltar em padrões próximos aos de antes da hecatombe.

Lembro como foi estranho e incômodo adaptar-se às regras de segurança que, depois do 11 de setembro de 2001, passaram a vigorar nas viagens aéreas. Um porre, mas não alterou praticamente em nada o hábito de viajar.

Agora, imaginando o melhor, no futuro próximo haverá mais regras de higiene e cuidados sanitários; mas, descoberta a vacina (como tudo indica) e atingida a imunidade coletiva, os protocolos de viagem não serão tão invasivos e radicais como são necessários neste momento.

O que é triste, assistindo à série da Netflix —além da vontade de viajar e comer—, é pensar que estes personagens, filmados em todo seu vigor antes da pandemia e oriundos de camadas populares de suas cidades (Buenos Aires, Salvador, Oaxaca, Lima, Bogotá, La Paz), poderão não estar mais lá.

Estou certo de que, passada a pandemia, aquilo que eles representam, aquela cultura e comida popular, não terá morrido.

Apenas torço para que também essas pessoas, que com mais ou menos propriedade foram escolhidas pela produção da série para expressar suas culturas, estejam ainda ali, com a saúde e as finanças em dia, quando as formos visitar.

Fonte: Folha de S.Paulo