Você daria um pão amanhecido para Jair Bolsonaro?

Eu, não.

O texto poderia terminar por aqui, mas alguns leitores ficariam insatisfeitos. Desenvolverei o tema, então.

Às vésperas da eleição, eu estava almoçando em Higienópolis, num restaurante kosher, frequentado majoritariamente pela comunidade judaica do bairro.

Na mesa ao lado, três senhoras ortodoxas comiam faláfel, schnitzel e pastrami com pepino. Restaurante pequeno, mesas próximas, todo mundo ouve a conversa alheia.

As tias falavam dos conselhos de um certo rabino, até que uma delas decidiu introduzir outro assunto:

“Esse Bolsonaro passa uma coisa boa, né? Uma energia positiva…”

Engasguei com a batatinha.

Sério, como assim? Como um povo que passou por tudo o que passou ainda cai nesse tipo de discurso?

A ignorância é uma explicação possível.

A senhorinha do restaurante judaico talvez não soubesse que Jair Bolsonaro sempre simpatizou com falanges de extrema-direita. Mas ela tinha a obrigação de saber o que as falanges de extrema-direita fizeram com o mundo no século 20. Se não soubesse, estupidez seria o caso.

A estupidez é outra hipótese para explicar a simpatia daquela senhora pelo candidato Jair Messias. Gente estúpida grassa feito capim, jorra aos borbotões de qualquer pocinho raso. Estúpidos existem em todos os povos, em todos os lugares.

No caso de determinado perfil de eleitor –e a tiazinha do falafel parecia se enquadrar nesse perfil–, a estupidez consiste em acreditar que a maldade pode ser seletiva.

Se pudesse, Jair exterminaria comunistas, petistas, gayzistas, chatos identitários, ambientalistas, globalistas, umbandistas e macumbeiros em geral, pacifistas boiolas, antifascistas, antirracistas, jornalistas, intelectuais, moderados e ponderados. Mas não lhe representaria mal algum, pensava a eleitora –afinal, ambos compartilham a muitas ideias.

Deu no que deu. O Bolsonaro presidente tem a crueldade como modus operandi. Guarda maldade suficiente para cada um dos 210 milhões de brasileiros.

Fez do país um pária global para lamber as botas de Donald Trump, o psicopata do norte. Escolheu os piores quadros possíveis para seu ministério, jogando napalm nas políticas externa, ambiental, de educação e de direitos humanos. Encurralou povos indígenas e populações tradicionais que dificultavam o avanço da grilagem e do agronegócio predatório.

Tudo promessa de campanha. Ele só não fez mais porque o Legislativo e o Judiciário lhe impuseram alguns freios –ah, a ditadura do STF…

Dos artistas e pensadores mortos no primeiro ano de mandato, Jair só homenageou um certo MC Reaça, que se suicidou depois de agredir a namorada, supostamente.

Até aquele ponto, a sra. Faláfel fora poupada e talvez até estivesse contente com o presidente sincerão e politicamente incorreto.

Mas aí veio a pandemia. E Bolsonaro foi obrigado a falar e fazer.

Falando, deixou explícito que desconhece a empatia. Não conseguiu expressar condolências e, pior, zombou da dor das dezenas de milhares de vítimas fatais da Covid-19. Resfriado, gripezinha, brasileiro precisa ser estudado, histórico de atleta, e daí, não sou coveiro e por aí vai.

Fazendo, agiu para sabotar os esforços regionais e internacionais para conter a doença. Portou-se como agente do caos. O infeliz que mela as cartas do jogo. Para tentar se livrar do ônus da crise, criou uma barafunda em que o país, sem liderança, vagueia como galinha degolada na pandemia.

No dia em que anunciou estar com a Covid-19, Jair perdeu mais uma oportunidade de parecer humano. Poderia ter fingido humildade –agindo como um político– e sinalizado uma guinada na condução da crise, para melhorar a imagem pública. Optou por tacar fogo no puteiro mais uma vez.

Jair é incapaz de aprender. Seu instinto beligerante o leva a agir de forma autodestrutiva, qual o escorpião nas costas do sapo. Se ele atenta contra si próprio, imagine se dá um vintém para o destino da pobre sra. Faláfel.

O presidente da República é o grande responsável pelo massacre em curso.

Por isso eu não desejo que ele morra. Desejo que Jair sobreviva até que a sensatez se restabeleça para julgá-lo pelos crimes sórdidos.

No dia da posse, Jair Bolsonaro já deixou claro o que estaria por vir. Deu uma canseira de horas na imprensa e mandou confiscar as maçãs e as bananas que os jornalistas levaram para lanchar –sob o pretexto de que poderiam estar envenenadas (???!!!).

Se esse homem se tornasse um pedinte em situação de rua, eu lhe negaria um pão velho, murcho, duro, amanhecido, dormido. Não trato bem quem quer minha destruição. Pode enfiar a carta da caridade cristã de volta no baralho: eu sou ateu.

O que me dói é pagar, com impostos, os almoços e jantares dessa criatura.

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Fonte: Folha de S.Paulo