A cada quatro anos, o dia do trabalho, que nos Estados Unidos é comemorado na primeira segunda-feira do mês de setembro, serve como marco do início da reta final da corrida eleitoral para a Casa Branca.
Em busca da reeleição, o presidente Donald Trump chega a esse momento em condição ligeiramente mais favorável do que estava há algumas semanas.
Nos últimos dez dias, a campanha do republicano foi capaz de interromper uma tendência de alta na vantagem que Joe Biden, seu rival democrata, abria sobre Trump desde o início de agosto. No agregado de pesquisas nacionais do site FiveThirtyEight, a margem de Biden sobre Trump caiu de 9,3 pontos percentuais para 7,5, uma redução de quase dois pontos. Ao mesmo tempo, a aprovação do presidente passou de 40,2%, no fim de julho, para 43,2% agora, uma melhora de três pontos percentuais.
Na série histórica, a maior diferença (9,6 pontos percentuais) entre os candidatos aconteceu entre junho e julho e a menor foi registrada no começo de abril, quando ambos estavam tecnicamente empatados na margem de erro, com Biden apenas 3,4 pontos percentuais à frente de Trump.
É prematuro falar em tendência pró-Trump ou em virada nas pesquisas, mas os números sugerem que os movimentos recentes do presidente podem ter tocado o eleitorado. Entre as ações relevantes estão os quatro dias da Convenção Republicana, que, no fim de agosto, serviram como um desagravo à gestão de Trump, o novo enfoque da campanha do presidente na pauta de violência urbana, com a pandemia de coronavírus empurrada para o fundo do palco, e a melhora nos índices de desemprego, que recuaram dos dois dígitos vistos nos últimos meses para 8,4%.
E embora seja notável que Trump chegue a esse momento da corrida em situação comparável a de George Bush, que, em 1992, não conseguiu se reeleger, e abaixo do nível de popularidade de incumbentes que obtiveram mais quatro anos na Casa Branca, os movimentos dos números e a sensação de que o presidente pode estar retomando terreno na preferência dos eleitores fez com que, há uma semana, o documentarista Michael Moore, eleitor democrata, dissesse que “alguém precisa acionar o alarme de incêndio político agora”.
Moore quer evitar o efeito surpresa que tomou parte da população americana, da imprensa e dos políticos quando, em 2016, Trump venceu a disputa no colégio eleitoral e chegou à Presidência, apesar de a democrata Hillary Clinton ter conquistado cerca de 3 milhões de votos a mais e ter passado meses na frente nas pesquisas antes do pleito.
Uma série de fatores explica o que aconteceu em 2016, mas um elemento é fundamental: o establishment político e seus analistas subestimaram a força de um candidato como Trump e não colocaram na conta elementos que desequilibraram a disputa final.
Para não incorrer no mesmo erro agora, quando de novo Trump aparece atrás nas pesquisas, analistas políticos têm listado o que consideram ser características de Trump que podem colocá-lo por mais um mandato como o presidente dos Estados Unidos, ainda que hoje ele não apareça como favorito.
Entusiasmo do eleitor para ir às urnas
Diferentemente do Brasil, o voto nos Estados Unidos não é obrigatório. E isso muda tudo. Os candidatos não precisam apenas convencer os eleitores de que têm o melhor programa de governo ou de que serão seu melhor representante, mas têm de animá-los a sair de casa (ou do trabalho) e ir à urna votar.
A eleição presidencial americana acontece em dia comercial (uma terça-feira) e normalmente demanda paciência dos eleitores, que precisam esperar na fila pela sua vez de chegar à urna. Em 2020, além das filas, os eleitores terão ainda que encarar o risco de se contaminar com covid-19.
Não é pouca coisa a enfrentar para exercer o direito de escolher o próximo mandatário. E por isso os institutos de pesquisa costumam perguntar aos eleitores o quão animados eles estão em se apresentar às urnas. É nesse quesito que os apoiadores de Trump batem de goleada os de Biden.
Perguntados pelo Instituto YouGov em julho sobre seu grau de apoio ao candidato que escolheram, 40% dos eleitores de Biden se disseram entusiasmados enquanto que 68% dos de Trump responderam o mesmo.
O instituto também quis saber quão empolgados os eleitores estavam para ir às urnas em novembro. Entre os eleitores de Trump 76% disseram-se muito empolgados e apenas 11% admitiram que poderiam não comparecer. Enquanto que no caso de Biden, 69% estavam animados e 16% não.
Diante dos números, Moore exortou a campanha democrata a agir. “O nível de entusiasmo de 60 milhões de apoiadores de Trump está muito alto. Os de Joe (Biden), nem tanto”, afirmou o documentarista.
A diferença de entusiasmo pode ser especialmente decisiva nos Estados-pêndulos, onde as eleições são efetivamente decididas. Uma pesquisa divulgada pela CNN em meados de agosto mostrou que, entre eleitores já registrados para votar, a diferença entre Biden e Trump em 15 Estados-chave caía para apenas 1%, com 49% para o democrata contra 48% para o republicano.
A depender do Estado, eleitores podem se registrar até mesmo poucos dias antes do dia da eleição, em 3 de novembro, mas o fato de se registrar com antecedência é em si uma medida objetiva de entusiasmo e comprova o diagnóstico de Moore sobre a temperatura dos militantes trumpistas. Em 2016, esse teria sido um dos pilares da derrota de Hillary, já que democratas alinhados ao socialista Bernie Sanders não chancelaram a candidatura dela nas urnas.
Sem a possibilidade de comparecer a comícios eleitorais, por conta da pandemia, nos últimos dias, apoiadores de Trump deram mostras públicas de força ao partir em carreata de caminhonetes, adornadas de bandeiras do republicano, para enfrentar manifestantes por justiça racial em Portland, Oregon, ou paradas de barcos em lagos e na costa de Estados como Flórida, Califórnia, Illinois, Nova Jersey e Texas.
Trump segue se vendendo como um outsider
“Até 2016 eu jamais havia votado, nem me interessava por política. Mas quando Trump surgiu, eu senti que ele era diferente, quis apoiar, votei pela primeira vez na vida e vou votar nele de novo agora”, afirma Robert Leeds, eleitor de Trump de 47 anos que vive em Daphne, cidade de 25 mil habitantes no Estado do Alabama, onde Trump venceu em 2016 com 62% dos votos.
Leeds, que trabalha como carpinteiro e motorista de aplicativo, é exemplar de um grupo de pessoas alheias à política até recentemente, quando Trump as atraiu para o processo eleitoral ao se apresentar como um outsider.
O apelo foi central na campanha de 2016. Então novato em disputas eleitorais, Trump desmoralizou boa parte dos caciques republicanos que concorriam nas primárias contra ele – nomes de políticos de carreira e de família como Ted Cruz e Jeb Bush.
Na ocasião, Trump prometeu aos eleitores que, se fosse eleito, drenaria o pântano de Washington D.C., em uma referência não só à geografia da capital americana, mas aos interesses lamacentos e opacos contra os quais ele dizia lutar. Agora, apesar de estar há quatro anos no comando do país, Trump segue se vendendo – e sendo visto por parte dos eleitores – como um penetra no círculo político tradicional, ao qual parte dos americanos desenvolveu aversão.
“Ele é um homem de negócios, sabe fazer as coisas. Se ele não fez mais, foi porque não deixaram. Mas tenho certeza que com Hillary minha vida estaria pior agora”, afirma o eleitor Leeds, resumindo a percepção que Trump se esforça para manter viva.
Ao lançar sua candidatura, em um discurso em Orlando, na Flórida, em 2019, Trump afirmou que seu governo foi sitiado pela “classe política permanente”. “Nosso movimento patriótico está sob ataque desde o primeiro dia”, afirmou o presidente, para na sequência retomar a imagem usada na campanha de 2016: “o pântano está resistindo de forma cruel e violenta”.
A ausência de nomes históricos na convenção republicana de 2020, recheada de familiares e amigos de Trump, foi usada para reforçar essa impressão de que Trump é um estranho no ninho.
“Se você se lembra das primárias de 2016, o presidente Trump teve muitos problemas com o establishment republicano. Ele começou a abordar algumas questões no Partido Republicano que haviam sido ignoradas, como imigração ilegal. Não temos nenhum republicano vivo, fora o próprio presidente Trump, que tenha muita popularidade ou seguidores. O presidente Bush (filho) é percebido como alguém que fez coisas excelentes em certas áreas, mas também como tendo administrado mal tantas outras. Então a ausência dele da convenção não é significativa”, afirmou Michael Johns, um dos fundadores do Tea Party e apoiador de Trump.
O evento republicano, totalmente focado no presidente, contrastou com a convenção democrata, acontecida uma semana antes, que ostentou figuras de proa no partido, como os ex-presidentes Barack Obama, Bill Clinton e Jimmy Carter, unidos às mais diversas alas da agremiação e até mesmo a republicanos históricos que rejeitam Trump.
Ao mesmo tempo em que se caracteriza como deslocado da política, Trump repete que seu opositor, Joe Biden, tem quase 40 anos de carreira pública – com seis mandatos ao Senado e mais 8 anos como vice-presidente. E que em todo esse período não produziu um legado marcante. A ideia é aumentar a rejeição de Biden junto à população ao caracterizá-lo como uma dessas criaturas que habitam o “pântano” da capital.
Em 2016, estratégia semelhante foi usada contra Hillary Clinton, percebida como aliada de políticos e do grande capital, e cuja rejeição ultrapassou os 50% dos eleitores ao longo da campanha.
Presença online desproporcional
“Ouçam, liberais. Se vocês acham que Donald Trump não pode ser reeleito em novembro, vocês precisam passar mais tempo no Facebook”. O alerta é de Kevin Roose, colunista de tecnologia do jornal americano The New York Times.
Desde 2016, Roose rastreia manifestações partidárias nas redes sociais. De acordo com ele, a maior parte dos dias, os dez posts de Facebook mais populares na rede são todos (ou quase) de conservadores e/ou republicanos trumpistas. Com maior ou menor frequência, se alternam na liderança páginas como “Eleitores de Trump 2020”, “Patriotas dos EUA por Donald Trump” ou o perfil da rede de televisão Fox News, da ex-governadora do Alasca e militante do Tea Party Sarah Palin ou do ex-editor do site de direita Breitbart Ben Shapiro.
O investimento da direita – e de Trump – nas redes sociais não é uma novidade. Há quatro anos, a estratégia digital dele contou com a coordenação de Steve Bannon, que além de ex-diretor do site Breitbart era também um dos nomes à frente da Consultoria Cambridge Analytica, responsável por minerar dados de usuários de redes sociais e encaminhar propaganda política a partir de perfis psicológicos traçados com a ajuda desses dados. Em 2018, o Facebook anunciou que a consultoria recolheu irregularmente dados de 80 milhões de pessoas, 70 milhões delas americanas – e investigações sobre a fraude e seus impactos seguem em curso nos Estados Unidos e na Europa.
A Cambridge Analytica se anunciava como capaz de fazer “a propaganda certa chegar a pessoa certa”. Depois do escândalo, a consultoria entrou em falência. Mas pelo movimento das próprias redes sociais, isso não representou um revés à divulgação em massa de conteúdo de direita ou da extrema-direita. Em seu artigo Roose questiona se o Facebook não seria hoje o ambiente onde se expressa a “maioria silenciosa” que dará vitória a Trump em novembro. O termo “maioria silenciosa” foi usado pela primeira vez pelo então candidato republicano Richard Nixon, que afirmou que venceria as eleições contando com o voto das pessoas que, de suas casas em subúrbios americanos, reprovavam manifestações por justiça racial violentas como as que o país vivia naquela época. Nixon tinha razão e venceu.
Cinquenta e dois anos depois, Trump tem repetido que a “maioria silenciosa” também o elegerá. Ele afirma isso via Twitter, onde sua conta pessoal detém quase 86 milhões de seguidores. É um canhão de comunicação direta com o eleitor. Ali, o presidente mantém um estilo direto e pessoal: fustiga adversários ( ele costuma chamar Biden de “Joe sonolento” e Hillary de “Hillary vigarista”), desmente a imprensa, faz propaganda política e até governa. Não é raro que anuncie medidas da gestão por meio de tuítes. No período eleitoral, publica centenas de mensagens por dia, nos mais variados assuntos.
Já Biden, cuja conta de Twitter tem pouco mais de um décimo dos seguidores de Trump (9,3 milhões), se esforça para aumentar a agilidade nesse tipo de comunicação direta com o eleitor, mas boa parte de seus posts ainda têm o estilo da comunicação profissional, que nesse ambiente tende a afugentar o público e ser vista como pouca autêntica.
Ainda na web, nos últimos anos, tem ganhado terreno (e seguidores) a teoria da conspiração Qanon, que descreve Trump como um salvador do mundo contra uma organização de poderosos artistas de Hollywood, políticos democratas e empresários satanistas e pedófilos.
Embora ninguém saiba precisar o tamanho do impacto da teia de posts virais, a internet se tornou arena de batalha decisiva nas disputas eleitorais e nada indica que em 2020 será diferente.
Condição de determinar a agenda
Voto pelo correio pode ter fraude, violência nas cidades saiu do controle, eleitores devem votar duas vezes, vai ter vacina de covid-19 antes da eleição, talvez fosse melhor adiar o pleito. Todas essas ideias foram propostas ou defendidas por Trump nas últimas semanas e imediatamente tomaram as páginas da imprensa e as redes sociais.
Como notou a revista The Economist, Trump tem demonstrado a habilidade de pautar as discussões públicas, mesmo em desvantagem nas pesquisas.
Se a eleição fosse um jogo de xadrez, Trump jogaria com as brancas: além da primazia do movimento das peças, ele pode estudar as possibilidades de resposta do adversário e planejar a tréplica com antecedência. Uma vantagem não desprezível em uma disputa apertada como a atual.
Nas duas últimas semanas, foi o que ele fez com o tema da violência urbana. Na narrativa de Trump, prefeitos democratas foram cúmplices ou lenientes com violência provocada por protestos Black Lives Matter, que acontecem desde junho. Além disso, o partido teria abraçado planos de tirar verbas da polícia. E tudo isso explicaria o aumento da criminalidade e cenas eventuais de caos em algumas metrópoles americanas.
Assim, o presidente jogou um problema que acontece durante seu mandato no colo de Joe Biden, que se viu forçado a repetir condenações à violência nas ruas e a dizer que não pretende retirar verba da segurança pública. Em segundo plano ficaram a pandemia – que até a eleição terá matado mais de 200 mil americanos – e a recessão econômica.
Trump chegou inclusive a viajar a Kenosha, no Wisconsin, palco de tensão depois que um homem negro foi baleado pela polícia sete vezes pelas costas. Na sequência do episódio, manifestantes tomaram as ruas pedindo justiça à vítima, Jacob Blake, e, em resposta, homens armados e de direita decidiram confrontá-los. Um deles matou dois manifestantes com tiros de fuzil. Na cidade, Trump manifestou apoio à polícia e visitou áreas depredadas nos protestos. Ele não condenou a violência do grupo armado direitista. Dois dias mais tarde, Biden foi à cidade. Visitou a comunidade negra e a família de Blake, com quem Trump não esteve.
Se é verdade que domina a narrativa, dizem os analistas, é cedo para dizer se a interpretação dos fatos que Trump oferece terá aderência no eleitorado. “Trump define a agenda do noticiário, mas não necessariamente a agenda da eleição. A maioria dos eleitores (90%) não acompanha as notícias políticas tão de perto e passa batido por boa parte delas e dos anúncios. Só em outubro vai ser possível determinar o apelo disso junto ao público”, afirma Michael Cornfield, professor de comunicação política da Universidade George Washington.
Domínio sobre a máquina
Trump tem ainda a seu favor um elemento que costuma representar vantagem para qualquer governante que queira se reeleger em qualquer parte do mundo: a máquina do governo nas mãos.
No caso de Trump, na atual situação, isso se traduz em determinar a aceleração do licenciamento da vacina anti-covid e o escopo das medidas de auxílio emergencial, que tem trazido alívio à economia americana.
Mas representa também a condição de mobilizar os símbolos de poder a seu favor. O presidente tem convocado coletivas diárias em que anuncia rapidamente alguma medida executiva e na sequência dedica-se a fazer propaganda de seu governo e a atacar o adversário. Tudo transmitido aos vivo pelos canais oficiais.
Não só. Durante a convenção republicana, em um movimento sem precedente na história americana, Trump usou a Casa Branca como cenário para seu discurso de mais de uma hora como candidato, diante de uma plateia de 1,5 mil convidados. Para se ter uma ideia de quão fora da norma o ato é, em 1997 uma crise foi criada depois que o então vice presidente Al Gore admitiu ter usado seu escritório na Casa Branca para fazer algumas ligações telefônicas nas quais pedia doações de campanha.
Em 2020, Trump representa o Poder Executivo e está disposto a mobilizar o aparato do Estado para mostrar ao eleitor que merece mais quatro anos nesse lugar. Ele deixou isso claro no discurso na convenção: “Qual é o nome desse prédio?”, Trump perguntou à plateia, referindo-se à Casa Branca. E seguiu: “O fato é que nós estamos aqui e eles (democratas) não. Para mim, um dos edifícios mais bonitos do mundo. E não é um prédio, é uma casa, no que me diz respeito”, afirmou, para em seguida ser ovacionado pelos apoiadores.
*Correção às 20h20 de 10/09/20: A versão inicial dessa reportagem dizia que Bush não se reelegeu em 1982, mas o ano correto é 1992.
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Fonte: BBC